A SORTE E O AZAR

03 January 2018

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Escolher e comentar quatro fotografias do ano 2017 é um desafio. Ademais, não é arte que cultive. As fotografias são de 2017, mas podiam ser de outros anos, mormente, dos anos que se aproximam. Os temas resumem-se a questões simples: como enfrentar calamidades sem preparar as populações? Como idolatrar e, simultaneamente, exorcizar a técnica? Em termos de identidade, pode-se ser e não ser? Por que persistimos em ser tão desiguais no apoio à miséria alheia?

Texto de Albertino Gonçalves (investigador do CECS)

 

Rescaldo

Incêndio em Vieira de Leiria, Portugal, no dia 15 de Outubro de 2017 (Página das Nações Unidas no Twitter)

O ano 2017 foi um ano de seca e de incêndios. No dia 17 de Junho, deflagrou um incêndio no concelho de Pedrogão Grande: 53 000 hectares de área queimada, 64 mortos e 254 feridos. Foi o mais mortífero da história do País e o 11º a nível mundial desde 1900. Na origem, uma conjugação de condições climatéricas únicas. Volvidos 4 meses, no dia 15 de Outubro, centenas de incêndios devastaram o Norte e o Centro do País, agravados pelos ventos fortes e quentes provocados pelo furacão Ofélia: 54 000 hectares de área queimada; 45 vítimas mortais e 70 feridos.

Nos dias dos incêndios de Junho e de Outubro, a cobertura noticiosa manifestou-se incansável, quase desmesurada. O relatório da Comissão Técnica Independente, dedicado aos fogos de Junho, menciona que o Posto de Comando Operacional (PCO) “foi nos primeiros dias perturbado pela presença excessiva de autoridades e elementos de órgãos da comunicação social. Situação que se deveria evitar, pois a função de comando exige total concentração” (p. 15). As reportagens e as imagens sucederam-se e repetiram-se, numa cobertura sem pausas.

Nos dias seguintes aos dois incêndios, a realidade apresentou-se díspar. Por um lado, a solidariedade, generosa e organizada, não se fez esperar. Por outro lado, ao incêndio das florestas sucede o incêndio das palavras. O que correu mal? Quais foram as falhas? A quem atribuir as culpas? O oportunismo mediático e político sobreaquece a polémica. Os comentadores, os agóricos e os agónicos do espaço público, desfilam em pedestal de omnisciência na passerelle do princípio de Peter. Pelos vistos, a impotência pede expiação. A tragédia cede o lugar à farsa, durante longos dias.

Quando se aguardava que a Comissão Técnica Independente indigitasse, “cientificamente”, um bode expiatório, o relatório apresenta-se como um anti bode expiatório. O título de uma notícia do Jornal é conciso: “Foi tudo mal feito: relatório de Pedrógão não poupa (quase) ninguém” (Público, 12 de Outubro de 2017). Desguarnecidos, acossados pela urgência, ameaçados pelas chamas, não conseguimos. Falhámos! Nem a técnica nos valeu. Falhámos, porém, numa missão ao nosso alcance. Sensibilizar, formar, prevenir as pessoas. Alertar a população para os comportamentos a observar em situação de incêndio. Por exemplo, evitar sair de casa e circular na estrada. Faltaram mensagens deste teor durante o incêndio de Pedrógão e nos quatro meses seguintes; foram esboçadas algumas recomendações durante os incêndios do dia 15 de Outubro. É uma actividade útil e prioritária. O combate aos incêndios, além de um problema florestal e técnico, é também uma questão humana. A formação pode não apagar incêndios como os helicópteros, mas resguarda vidas. Em Portugal, não se está a preparar os cidadãos para fazer face a eventuais calamidades. Talvez se evitassem algumas desgraças.

A reacção aos incêndios de Junho e de Outubro lembra o povo japonês, castigado por tantas catástrofes. Há setenta anos, a antropóloga Ruth Benedict relatava deste modo o comportamento japonês:

“Quando as águas inundam uma aldeia japonesa, qualquer pessoa que se respeite a si mesma recolhe os haveres que quer levar consigo e procura as terras mais altas. Não há gritos, nem correrias tresloucadas, nem pânico (…). Tal comportamento faz parte do respeito que uma pessoa tem por si própria no Japão, incluindo quando sabe que não vai sobreviver.” (A espada e o Crisântemo, 1946, capítulo 8).

 

A santa técnica

Fila debaixo de neve junto à Frisbee, em Seul, na noite do dia 23 de Novembro 2017, véspera do lançamento oficial do iPhone X no mercado sul-coreano (Yonhap)

A técnica também falhou no incêndio de Pedrógão Grande, designadamente as telecomunicações, a mais técnica das técnicas atuais. Mas a nossa sabedoria isenta-a: a culpa não foi da técnica mas das entidades responsáveis e dos “agentes externos”. O homem moderno tem uma fé cega na técnica. Menos pela razão, e mais pelo mito. A técnica é uma extensão do homem que raia a paixão e a religiosidade. É um ídolo que nos acompanha na cidade e na intimidade. Até prova do contrário, é “fiel ao dono”. Interage connosco. A mínima privação deixa-nos tão desamparados como o Desterrado de Soares dos Reis. Compreende-se que se passe uma noite numa fila exposta à neve para comprar o novíssimo iPhone X. Lembra a veneração das relíquias pelos cristãos medievais. Mas o ser humano é atreito a paradoxos. Oscilámos entre a tecnofilia e a tecnofobia. Tanto louvamos a técnica como a exorcizamos. A técnica é a maior façanha e a maior ameaça do nosso tempo: na arte, na literatura, no cinema, na publicidade, nos movimentos sociais. As máquinas já interagem e já são autónomas, falta-lhes adquirir vontade própria e revoltar-se contra o criador. Sabemos, desde o cajado de Moisés, que as coisas podem ganhar vida. Sabemos, graças ao cavaleiro da triste figura, que os engenhos podem agredir os engenhosos. A rebelião das máquinas autónomas constitui um tópico obsessivo do imaginário contemporâneo. Divididos entre a salvação e a perdição, entre a apoteose e o apocalipse, o paradoxo revela-se paroxístico. Dois exemplos, banais, ilustram estes extremos. Na série O Justiceiro (de Glen A. Larson; em exibição entre 1982 e 1986), o carro inteligente KITT é uma ajuda decisiva do seu parceiro. Trata-se de um “carro inteligente” com vontade própria. Não obstante, desempenha a sua missão: servir. Este é o lado solar da técnica. Em 1973, estreou o filme Westworld. Num parque temático, com robots, na secção dedicada ao faroeste, sucede o impossível. Os visitantes envolvem-se em duelos com os robots, e ganham sempre. Um dos robots começa, porém, a matar os visitantes. A máquina com vontade própria acaba por se revoltar contra o criador. Este é o lado lunar da técnica.

O que justifica esta desconversa acerca de uma fila para comprar o iPhone X? Filas há muitas. Por exemplo, as enormes filas insensatas para saborear um molho irrepetível no McDonald’s. Os (hiper)modernos parecem ter desenvolvido uma sacralidade própria, ao mesmo tempo acessível, dispersa, fantasiosa e táctil: uma consola, um smartphone, um automóvel inteligente e um molho fast food valem, cada um por si, uma vela.

 

Sentir em conjunto

Manifestação pró-independência na Praça Catalunha, em Barcelona © Albert Gea Reuters (Visão 2.05.2017)

As identidades territoriais europeias atravessam uma fase de efervescência ostensiva. Na fotografia de Albert Gea, manifestantes pró-independência enchem a Praça da Catalunha, em Barcelona. A fotografia lembra a pintura de Jackson Pollock, designadamente a técnica do dripping. As pessoas parecem espalhadas aos molhos, como pingos não pincelados, num efeito político e estético admirável. Albert Gea fotografou o prazer de sentir em conjunto.

Jackson Pollock. Lessons.

Algumas manifestações, como as paradas, são afirmativas, mas a maioria é reativa. Esta manifestação de Barcelona é performativa. Indiciam-no as bandeiras, as cores, a hexis corporal. Transparece uma comunhão de ideias e de sentimentos. É, de certa forma, profética. Anuncia-se o que se espera.

Na Catalunha, no País Basco, na Galiza, sempre estranhei o modo de ser espanhol dos nossos vizinhos. Em Portugal, com uma pequena ajuda do Estado Novo, somos minhotos e portugueses. Em Espanha, é-se espanhol, mas galego (ou basco ou estremenho). É-se espanhol não o sendo. A questão da independência da Catalunha é um desafio para a Espanha e para a Europa. A Europa já demonstrou ter bons amortecedores. A Espanha continua uma incógnita.

 

Os condenados da terra

Refugiados do Sudão do Sul à espera de comida em Arua, Região Norte do Uganda. © HCR David Aziacsm 03.2017

Poucas pessoas ouviram falar de um país chamado Sudão do Sul. Tornou-se independente em 2011. A guerra, de cariz religioso, é uma constante da história do Sudão. O novo país está a braços com uma guerra civil terrível. O número de mortos, cerca de 300 000, não é inferior ao da guerra civil da Síria (Africa 21 Online, Dezembro de 2017). Segundo a ONU, 2,3 milhões de sul-sudaneses necessitam urgentemente de ajuda alimentar. O número de refugiados nos países vizinhos ascende a 1,6 milhões, um valor elevado atendendo aos 11 milhões de pessoas que habitam o país. O fluxo tende a aumentar de forma alarmante (UNHCR/ACNUR Agência da ONU para os refugiados, Crise de refugiados do Sudão do Sul é a que cresce mais rapidamente no mundo, 22.03.2017).

O Sudão do Sul conseguiu a independência antes de outros territórios, mas junto ao Corno de África, longe da Europa. A maioria dos 1,6 milhões de refugiados não está às portas do Mediterrâneo. Está no Sudão, na Etiópia, no Quénia, na República Democrática do Congo, na República Centro-Africana e cerca de metade no Uganda. A geopolítica é madrasta: o Sudão não está na Síria, nem na Coreia do Norte. Tão pouco é vizinho de Israel ou da Turquia. Tem petróleo, é verdade, mas para atear e alimentar a guerra civil. O país figura em 181º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano; é o sétimo a contar do fim. Quanto às filas, umas disputam smartphones, outras, comida. A Terra deu mais uma volta ao sol, mas pouco mudou: o azar continua a não ser aleatório. Esta conversa é um déjà vu. Mas um déjà vu cronicamente preterido. Apetece inventar um efeito novo: o efeito do binóculo. Para ver o nosso umbigo, colocamos o binóculo do lado correto. Uma espécie de “realidade aumentada”. Para ver os outros, invertemos os binóculos. Uma espécie de realidade descurável. Varremos, como o Cantinflas, a miséria alheia para debaixo do tapete.