Big Data na polícia: inovação ou vigilância?

07 March 2025

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Imagine um futuro onde a polícia pode prever crimes antes que aconteçam, identificar suspeitos em segundos e analisar milhões de dados em tempo real. O Big Data promete revolucionar a segurança pública, tornando as investigações mais rápidas e eficientes. Mas a que custo? Quem garante que esses sistemas são justos? Será que estamos a trocar privacidade por uma ilusão de segurança? Nesta reflexão, exploro os desafios, dilemas e impactos do Big Data no policiamento e como essa tecnologia pode moldar o futuro da justiça e da vigilância.

Texto de Laura Neiva

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Imagine a cena: num departamento de polícia, um ecrã ilumina-se e, em microssegundos, o rosto de um suspeito aparece identificado. Parece ficção científica? Talvez. Mas a verdade é que tecnologias que analisam grandes volumes de dados para identificar padrões criminais e apoiar investigações já estão em uso e/ou em fase de desenvolvimento em vários países. Agora, reflita: para que estes sistemas funcionem, eles processam enormes quantidades de dados diariamente. E, entre esses dados, podem estar os seus. Alguma vez pensou que um algoritmo poderia considerá-lo suspeito sem que tivesse feito nada categorizado como ato criminal? Afinal, o desenvolvimento destas tecnologias promete prever o crime… Mas a que custo?

Vivemos tempos de rápida transformação digital e, no mundo da segurança pública, essa revolução não passa despercebida. O Big Data é já uma realidade que promete tornar as investigações mais eficazes, prevendo crimes e otimizando recursos. Diz respeito a um conjunto de tecnologias que possibilitam o acesso, tratamento e análise de grandes volumes de dados variados, a velocidades elevadas, com o objetivo de calcular correlações, em tempo real, que auxiliem tomadas de decisão (Cukier & Mayer-Schoenberger, 2013). Mas será que estamos preparados para lidar com as implicações éticas e sociais desta tecnologia?

A minha investigação de doutoramento levou-me ao coração deste debate: como os profissionais da Polícia de Segurança Pública (PSP) e da Polícia Judiciária (PJ) percebem Big Data? Quais as suas expectativas na integração destas ferramentas no seu trabalho diário? Para compreender esta realidade, realizei entrevistas com agentes da PSP e da PJ, analisando como estes profissionais percebem o potencial e os desafios do Big Data. Paralelamente, estudei a legislação nacional e europeia para perceber até que ponto estas práticas estão (ou não) enquadradas num regime legal claro e justo.

A investigação revelou um misto de entusiasmo e preocupação. Estas tecnologias são percecionadas num jogo de forças entre inovação e risco, eficiência e vigilância, segurança e direitos fundamentais. Deste estudo emergiram três principais eixos que refletem, não apenas os desafios técnicos e operacionais, mas também as tensões sociopolíticas e éticas subjacentes à implementação do Big Data no contexto policial.

Em primeiro lugar, a promessa da eficiência: o cruzamento de dados em tempo real pode acelerar investigações e ajudar a combater crimes complexos, como o cibercrime e o crime organizado. Os profissionais da PSP e da PJ apontam para o potencial destas ferramentas na identificação de padrões criminais, permitindo uma atuação mais proativa e fundamentada na análise de grandes volumes de informação. Há a expectativa de que o Big Data possa transformar a investigação criminal, tornando o trabalho policial mais preciso, ágil e baseado em evidência. No entanto, os entrevistados reconhecem que a tecnologia, por si só, não resolve os problemas estruturais da segurança pública. A eficácia das investigações continua a depender da formação especializada dos agentes, da coordenação interinstitucional e da capacidade crítica para interpretar os resultados produzidos pelos algoritmos.

Em segundo lugar, o dilema da regulação: o entusiasmo com o Big Data é, frequentemente, travado pela incerteza legal e pela ausência de um quadro regulatório claro. Os profissionais entrevistados manifestaram preocupações quanto à falta de normas específicas para orientar a utilização destas tecnologias na investigação criminal. Sem regras transparentes, o seu uso aumenta o risco de utilização arbitrária dos dados, o que pode resultar em práticas de policiamento desproporcionais e invasivas. A incerteza sobre a compatibilidade do Big Data com a legislação de proteção de dados pessoais, nomeadamente com o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), também levanta dúvidas entre os membros da PSP e da PJ. Além disso, a supervisão inadequada destes sistemas pode comprometer a prestação de contas, dificultando o controlo democrático sobre as práticas policiais baseadas em dados massivos.

Em terceiro lugar, os seus riscos e impactos sociais: a implementação do Big Data no policiamento e na investigação criminal não está isenta de perigos. Quem decide como os algoritmos são treinados? Que tipo de dados são utilizados para alimentar os sistemas? Como evitar que os preconceitos estruturais da sociedade sejam amplificados por estas ferramentas? O risco de discriminação algorítmica e de ampliação da vigilância sobre grupos sociais vulneráveis é uma preocupação central. Vários estudos têm demonstrado como estas tecnologias tendem a reproduzir desigualdades e a reforçar padrões de policiamento direcionados para comunidades racializadas e populações marginalizadas (ver, por exemplo, Babuta & Oswald, 2019; Lum & Isaac, 2016; Stahl, Schroeder & Rodrigues, 2023). O perigo de que o Big Data se torne um mecanismo de reforço de desigualdades sociais, em vez de um instrumento de justiça e equidade, é um dos pontos mais críticos que emergiram na investigação.

Desta forma, o estudo demonstrou que, apesar das promessas de inovação e modernização do policiamento, a implementação do Big Data continua a suscitar dúvidas e controvérsias. Se, por um lado, os membros da PSP e da PJ reconhecem o seu potencial para otimizar investigações e reforçar a segurança pública, por outro lado manifestam preocupações sobre a regulamentação, a ética e a eficácia destas tecnologias. Big Data não é apenas um instrumento técnico neutro, mas reflete dinâmicas de poder, decisões políticas e disputas sobre os limites da vigilância estatal.

Para garantir um uso justo e responsável destas tecnologias, é fundamental reforçar a literacia digital e a formação ética dos profissionais de segurança, promover auditorias independentes dos sistemas algorítmicos utilizados no policiamento e estabelecer mecanismos de transparência e supervisão robustos. A regulação do Big Data deve ser uma prioridade legislativa, de modo a evitar abusos e a garantir que a segurança pública não compromete os direitos fundamentais dos cidadãos. Não podemos olhar para o Big Data apenas como uma questão de eficiência operacional. Precisamos de um debate informado e transparente sobre os seus impactos sociais, garantindo que a inovação tecnológica vá de mãos dadas com a defesa dos direitos humanos (Neiva, 2023; Neiva & Machado, 2022).

A ideia de um policiamento baseado em dados não é nova, mas a capacidade de monitorizar populações em grande escala e em tempo real levanta questões fundamentais. Nos Estados Unidos da América, programas de Big Data foram abandonados após evidências de que reforçavam práticas discriminatórias contra minorias raciais (Brayne, 2017). Este é um exemplo claro de que a tecnologia, sem diretrizes regulatórias sólidas, pode reforçar desigualdades sociais e aprofundar problemas sistémicos em vez de resolvê-los. O mesmo pode ocorrer na Europa se não forem estabelecidos mecanismos regulatórios e transparentes. Em Portugal, a regulação ainda é incipiente, e o uso destas tecnologias nas forças policiais acontece de forma fragmentada, sem diretrizes claras sobre privacidade e ética.

O futuro do policiamento depende, não só das tecnologias que usa mas, da forma como escolhe utilizá-las. É essencial capacitar os profissionais de segurança para utilizarem estas ferramentas de forma crítica e ética, promovendo uma cultura de transparência e prestação de contas. É necessário um debate equilibrado que não demonize a tecnologia, mas que também não ignore os seus riscos. O uso responsável destas ferramentas deve ser guiado pelo princípio da proporcionalidade, garantindo que a vigilância não ultrapassa o necessário para garantir a segurança pública.

O Big Data não deve ser uma ferramenta de poder descontrolado nas mãos das autoridades. Cabe a todos – sociedade civil, investigadores, legisladores e órgãos de comunicação – acompanhar e questionar o seu uso (Neiva & Machado, 2022). Está na hora de expandirmos este debate para além dos círculos policiais e académicos. Afinal, esta não é apenas uma questão de segurança pública, é um desafio que diz respeito a todos nós. Será possível conciliar inovação tecnológica e respeito pelos direitos humanos? Como evitar que o policiamento baseado em dados amplifique desigualdades preexistentes? E quem controla a tecnologia que nos vigia?

Bibliografia

  1. Babuta, A., & Oswald, M. (2019). Data Analytics and Algorithmic Bias in Policing. Technical Report. Royal United Services Institute for Defence and Security Studies for Defence and Security Studies, 1-18.
  2. Brayne, S. (2017). Big Data and Policing: Surveillance, Race, and the Future of Law Enforcement. Oxford University Press.
  3. Cukier, K. N., & Mayer-Schoenberger, V. (2013). The rise of Big Data. Foreign Affairs, 92(3), 28–40.
  4. Lum, K., & Isaac, W. (2016). To predict and serve? Significance, 13(5), 14–19. https://doi.org/10.1111/J.1740-9713.2016.00960.X
  5. Neiva, L. (2023). Big Data technologies in criminal investigations: The frames of the members of Judiciary Police in Portugal. Criminology & Criminal Justice, 1–23. https://doi.org/10.1177/17488958231192767
  6. Neiva, L., & Machado, H. (2022). Rumo a uma implementação transparente, ética e inclusiva das tecnologias – o caso de Big Data na investigação criminal. In J. Sarmento & E. Araújo (Eds.), Viagem e Cosmopolitismo: Da Ilha ao Mundo (pp. 119–136). Vila Nova de Famalicão: Húmus.