Desigualdades de género em tempos de pandemia

09 July 2020

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No contexto que vivemos é crucial pensar nos impactos da pandemia da covid-19 na vida das pessoas, nomeadamente nas que se encontram em situação de maior vulnerabilidade, sendo que entre elas estão as mulheres. São várias as esferas que requerem uma análise com lentes de género e a cada dia que passa surge a necessidade de mais estudos nesta área. Estes devem promover uma reflexão sobre a situação atual, que em alguns casos é semelhante a outras crises já vividas, mas, acima de tudo, devem ser a base de ações e medidas futuras. Nesta breve reflexão sobre os impactos desiguais da pandemia centramo-nos na esfera laboral e na sua articulação com as demais dimensões da vida.

Texto de Carla Cerqueira (investigadora do CECS)
Email: carla.cerqueira@ics.uminho.pt

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Vida laboral e desigualdades de género: uma outra pandemia

Nesta reflexão centramo-nos na esfera laboral, sendo que esta não pode ser pensada sem termos em consideração todas as outras dimensões da vida. Aliás, os impactos que a pandemia de covid-19 está a ter no mercado de trabalho são evidentes, mas, tal como acontece com outras crises, estes afetam sobretudo as pessoas mais vulneráveis, entre as quais se encontram as mulheres. Recentemente foi divulgado um estudo sobre o “Trabalho e Desigualdades no Grande Confinamento: perdas de rendimento e transição para o teletrabalho”, da autoria de uma equipa de investigação da CoLABOR (Silva et al, 2020), que mostra que as mulheres em situação de teletrabalho e com crianças são as que relatam mais dificuldades na gestão do tempo. Como referia Heloísa Perista (2002: 447), “o trabalho, nas suas diferentes formas — designadamente trabalho remunerado em contexto profissional e trabalho não pago no contexto dos agregados domésticos —, constitui-se como um dos domínios da actividade humana nos quais a valorização social dos tempos se espelha de modo mais assimétrico”. Recordemos o estudo sobre “os usos do tempo de homens e de mulheres em Portugal” (Perista et al, 2016) que ressalta precisamente a necessidade de uma distribuição equilibrada do trabalho não pago e do cuidado, pois este continua a ser feito maioritariamente pelas mulheres.

No contexto nacional, além da preocupação académica existente em relação a esta questão (patente em diversos projetos de investigação que têm sido desenvolvidos nos últimos anos), esta tem estado presente também na agenda dos movimentos sociais pela igualdade de género (por exemplo, nas manifestações do 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres, ou do 6 de março, Dia Nacional da Igualdade Salarial) e nas políticas desenvolvidas por vários organismos públicos (ver, por exemplo, a CITE -Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego e a CIG – Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género). Portanto, trata-se de uma temática que tem ganho visibilidade na agenda científica, nos movimentos sociais e nas políticas públicas.

Como facilmente se percebe pelo que já foi enunciado, a distribuição desigual do trabalho não remunerado e desenvolvido na esfera doméstica já existia, mas acentuou-se durante a crise, muito pelo encerramento de escolas e serviços de apoio a crianças e pessoas com dependência. É também de notar que aquilo que realmente é novo para muitas pessoas neste período de pandemia é o facto de o trabalho remunerado e o trabalho doméstico se realizarem no mesmo espaço, nos mesmos horários e haver uma diluição do espaço público e do espaço privado. Esta situação gera dificuldades acrescidas, pois não só se acumulam ou multiplicam as tarefas, mas elas necessitam de ser feitas ao mesmo tempo, muitas vezes no mesmo espaço físico sem este estar preparado para tal.

É também por isso que o inquérito “Opinião Social” do Barómetro Covid-19, desenvolvido pela Escola Nacional de Saúde Pública, evidencia que as mulheres e as pessoas em teletrabalho são as que se mostram mais ansiosas e tristes durante este período. Basta pensar que mesmo a situação de teletrabalho é nova para muitas pessoas e empresas, que esta necessita de uma adaptação e de uma reorganização do método de trabalho que não se faz de um momento para o outro. De mencionar que a legislação portuguesa que foi elaborada para o estado de emergência referia que se um dos progenitores estivesse em teletrabalho teria de ficar com as crianças ao seu cuidado e o outro não tinha direito a esse apoio familiar extraordinário. Portanto, percebe-se claramente a dificuldade no quotidiano de muitas famílias. Enquanto trabalhavam tinham de cuidar das crianças e de todas as necessidades inerentes à casa. Embora o estado de emergência tenha terminado esta situação não mudou assim muito para várias pessoas, que continuaram com os seus filhos em casa porque não estes tinham ensino presencial ou porque existia e ainda existe o receio de contágio das crianças e o desconfinamento ainda está numa fase inicial.

Os diversos estudos que têm surgido, quer a nível nacional, quer a nível internacional, demonstram precisamente a dificuldade de conciliação da esfera profissional com a esfera familiar e pessoal. Aliás, a socióloga espanhola María Ángeles Durán referiu recentemente numa entrevista que “teletrabalhar não é conciliar, é somar dois trabalhos” e que esta estratégia não pode ser “uma solução a médio prazo”. Apontou igualmente que “há muito cansaço e esgotamento, o tema das crianças não foi resolvido”. Embora em vários países alguns níveis escolares tenham aberto, muitas crianças e jovens continuam em casa para evitar os contágios e a responsabilidade de acompanhamento tem recaído sobretudo sobre as mulheres. Estas também são a maioria no auxílio às pessoas idosas ou a outras pessoas em situação de dependência.

Portanto, esta situação vem colocar novamente a tónica numa questão que tem sido central para o campo dos estudos de género e que se refere, por um lado, à desvalorização do trabalho doméstico e da esfera do cuidado e não pago, e por outro, à conciliação e gestão do tempo entre esfera pessoal, familiar e profissional.

Paralelamente, e ainda no que concerne à vida laboral, a pandemia de covid-19 tem levado à perda de muitos empregos a nível mundial. De acordo com 5ª edição da ILO Monitor: COVID-19 e o mundo do trabalho, da Organização Internacional do Trabalho, há uma perda de 400 milhões de empregos e a desigualdade de género aumentou. As mulheres trabalhadoras têm sido as mais afetadas no que diz respeito à perda de emprego, ao acréscimo das tarefas em casa, além de serem dominantes nos setores de trabalho doméstico e temporário, assistência social e de saúde. Têm menos proteção social e estão mais facilmente expostas ao risco de infeção e transmissão.

A Plataforma Portuguesa dos Direitos das Mulheres também mostrou claramente que, no que diz respeito ao contexto nacional, as mulheres têm sido as mais prejudicadas no mercado de trabalho e que a pandemia só veio reforçar as desigualdades já existentes.

Neste domínio foi divulgado recentemente um relatório da Amnistia Internacional sobre a Hungria mostrou que a pandemia está a exacerbar a desigualdade de género no mercado de trabalho, com as mulheres a sofrerem níveis mais altos de insegurança e discriminação.

Se nos debruçarmos sobre a academia e a produção científica, durante este período também surgiram dados e reflexões que revelam que as investigadoras estão a submeter menos artigos científicos e que esta sobrecarga de tarefas vindas de diversas esferas tem de fazer repensar o modo de fazer ciência. Esta é uma questão que obviamente importa trazer para a discussão e que já tentámos aflorar num artigo científico sobre a academia neoliberal e os impactos que esta tem em termos de género (Augusto et al, 2018) mesmo antes de toda esta situação que vivemos. Agora importa olhar especificamente para este momento que vivemos e para as consequências em termos de (re)organização do trabalho e possíveis assimetrias daí decorrentes.

Apesar de vários países mostrarem atenção a esta questão, inclusive Portugal, é preciso continuar a acompanhar a situação nas várias esferas laborais.  Por um lado, estamos em diferentes fases da pandemia a nível mundial, por outro os impactos que hoje conhecemos são apenas uma ponta do iceberg. Se as desigualdades de género no mercado laboral continuam a ser notórias a vários níveis, estas podem ser ainda mais acentuadas com a crise que vivemos. Por exemplo, não podemos ignorar que as assimetrias salariais continuam a existir, que na União Europeia e em Portugal as mulheres que exercem as mesmas funções ganham menos 16% do que os homens, tal como sublinhou recentemente Sofia Colares Alves, representante da Comissão Europeia em Portugal. Além disso, apesar de todas as medidas implementadas, entre outros países europeus, Portugal está a falhar na redução da desigualdade salarial entre homens e mulheres. Este cenário revela que continuam a ser extremamente necessários os dados estatísticos que trazem para o espaço público as desigualdades de género existentes na vida laboral. Contudo, são igualmente importantes, e cada vez mais prementes, os estudos e reflexões que revelam as assimetrias de género mais veladas e subtis e que muitas vezes continuam silenciadas. Há também diferenças marcantes entre as mulheres, que são atravessadas por outros eixos de pertença identitários, que muitas vezes as colocam numa situação de maior privilégio ou de maior opressão. É por isso central que as análises possam incorporar uma abordagem interseccional (Crenshaw, 1991), a qual continua a estar muitas vezes ausente ou a ser feita de forma quase espartilhada. Porque esta pandemia não afeta todas as pessoas da mesma forma. Aliás, esta pandemia está a contribuir para expor as vulnerabilidades de alguns grupos sociais.


Este trabalho é apoiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Financiamento Plurianual do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade 2020-2023 (que integra as parcelas de financiamento base, com a referência UIDB/00736/2020/, e financiamento programático, com a referência UIDP/00736/2020).


Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons – Atribuição-Não Comercial 4.0 Internacional

 

Referências bibliográficas

Augusto, A; Sales, C.; Araújo, E. & Cerqueira, C. (2018). The Place for Gender Research in Contemporary Portuguese Science and Higher Education Policies within the Context of Neo-liberalism, In Heike Kahlert (ed). Gender Studies and the New Academic Governance (pp.107-128). Wiesbaden: Springer. DOI 10.1007/978-3-658-19853-4_6

Crenshaw, K.  (1991). Mapping the Margins: Intersectionality, Identity, Politics and Violence Against Women of Color, Stanford Law Review 43: 1241-99

Perista, H. (2002). Género e trabalho não pago: os tempos das mulheres e os tempos dos homens, Análise Social, vol. XXXVII (163), 2002, 447-474 Retirado de http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218732780P9jPM6nt5Ik17YP4.pdf

Perista, H; Cardoso, A., Brázia, A., Abrantes, M., & Perista, P. (2016). Os usos do tempo de homens e de mulheres em Portugal. CESIS – Centro de Estudos para a Intervenção Social e CITE – Comissão para a Igualdade no Trabalho. Retirado de
http://cite.gov.pt/asstscite/downloads/publics/INUT_livro_digital.pdf

Silva, P. A.; Carmo, R. M.; Cantante, F; Cruz, C.; Estevão, P.; Manso, L. & Pereira, T. S.  (2020). Trabalho e Desigualdades no Grande Confinamento – perdas de rendimento e transição para o teletrabalho (Estudos Colabor, nº2/2020): Colabor – Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social. Retirado de https://colabor.pt/wp-content/uploads/2020/04/Estudos-CoLABOR-2.pdf