O Colonialismo nos Manuais Escolares de História do 1º ciclo do Ensino Secundário em Moçambique após a independência

21 July 2020

Sorry, this entry is only available in European Portuguese. For the sake of viewer convenience, the content is shown below in the alternative language. You may click the link to switch the active language.

A imagem do colonialismo e sua abordagem foram construídas e modificadas em dois períodos distintos. Da independência nacional em 1975 até a introdução da Constituição em 1990, o colonialismo foi representado de forma dura e negativa, cujas narrativas construídas relacionavam-se com o seu caráter “explorador” ou “dominador”, “opressor”, “ambicioso”, “desumano”, “racista e discriminatório”, criador da desigualdade e da pobreza nas colónias. Por seu turno, o período subsequente, (1990 – a atualidade) o colonialismo foi e tem sido representado de forma crítica e reflexiva, com uma visão menos dicotómica e rígida que permite abordagem não apenas de aspetos negativos, mas também de positivos, tais como a herança de um conjunto de infraestruturas, a influência colonial na divisão político-administrativa, a difusão da ciência e das línguas europeias, entre outros. Estas são algumas conclusões da investigação na tese de doutoramento intitulada “Representações do Colonialismo nos Manuais Escolares de História do 1º Ciclo do Ensino Secundário geral no período pós-independência em Moçambique”.

Texto de Cassimo Manuel Jamal (investigador do CECS)
E-mail: jamalcassimo@yahoo.com.br

Andrew Neel (Unsplash)

Investigar as representações sociais constitui um dos propósitos dos Estudos Culturais, que têm o compromisso de examinar criticamente os modos de interpretação da realidade social e as práticas culturais. Este processo tem sido caraterizado por conflitos sociais e pelas relações de poder, tendentes a apropriação e seleção de memórias do passado por um grupo, assim como para o seu apagamento ou silenciamento. Por isso, enquadrada na área de Estudos Culturais, a investigação procurou analisar como é que o passado colonial tem sido representado nos manuais escolares de História do 1º ciclo do ensino secundário geral em Moçambique, no período após a independência e que propósitos a ele se relacionavam. Procura ainda aferir como as relações entre Moçambique e Portugal, inicialmente constituídas na base da diferenciação e de dominação (nós vs. eles, europeus vs. africanos, etc.), foram sendo reconstruídas e modificadas para uma relação menos binária e no reconhecimento do “outro” como parte de “nós”.

Para analisar as representações do colonialismo no Sistema Nacional de Educação em Moçambique no período após a independência, a investigação buscou estudar os manuais escolares de História do 1º ciclo do ensino secundário, produzidos no período após independência.  Para melhor aprofundamento do tema, recorreu-se a outros documentos de ensino produzidos neste período e a entrevistas a pessoas envolvidas na sua produção e ensino. Procurou-se nos documentos, tanto nas pessoas envolvidas entender as políticas que orientaram a sua produção, as narrativas e ideologias veiculadas, ou seja, que relações se pretendem construir entre Moçambique e Portugal.

Orientada na base de uma abordagem qualitativa e do método dialético, a investigação assentou na implementação de procedimentos de análise de conteúdo que incidiram sobre o conteúdo dos programas e dos manuais escolares de História, das entrevistas aos professores, autores de manuais e técnicos do INDE (Instituto Nacional de Desenvolvimento de Educação), instituição que elabora os programas e políticas de ensino em Moçambique. A análise de conteúdo é uma técnica de análise qualitativa que assenta na leitura, compreensão e interpretação de toda classe de documentos, abrindo assim as portas ao conhecimento de aspetos e de fenómenos da vida social que de outro modo seriam inacessíveis (Bardin, 2014).

A análise das representações do colonialismo a partir de manuais escolares em Moçambique permite-nos afirmar que o ensino do colonialismo variou ao longo dos tempos em função dos objetivos pretendidos em cada um dos contextos históricos do país (monopartidário e o multipartidário). Assim, no período monopartidário o ensino do colonialismo visava, a partir de um passado comum marcado pela exploração e discriminação, criar um sentimento de revolta e de rejeição do sistema colonial. Uma negação ao colonialismo com vista a criar a unidade e a identidade nacional. Trata-se de um contexto político de partido único, de ideologia marxista-leninista, que centralizou todo o processo de ensino, influenciando tanto a conceção de políticas educativas do modelo de educação, como a produção de materiais de ensino. O colonialismo, enquanto um dos conteúdos de ensino, era transmitido como a razão de todos os males, em particular, da pobreza e do subdesenvolvimento. Por isso, o seu ensino tinha um caráter “informativo”, pois o seu objetivo era o de resgatar as memórias coloniais de forma a facilitar a criação da nova geração que se pretendia “o Homem Novo”. As principais narrativas construídas sobre o colonialismo neste período relacionavam-se com o seu caráter “explorador” ou “dominador”, “opressor”, “ambicioso”, “desumano”, “racista e discriminatório”, criador da desigualdade e da pobreza nas colónias.

Essa conceção politico-ideológica prolongou-se até à aprovação da Lei n.º 6/92 que introduziu o multipartidarismo. Embora a nova Lei em referência tenha manifestado intenção de introduzir mudanças, de abordar a História de uma forma que se distanciasse da ideologia marxista-leninista, prevalecia ainda a marca socialista no ensino. Situação esta que viria a alterar-se a partir de 2004-2008, quando se iniciou a revisão curricular dos Ensinos Básico e Secundário Geral.

Nestas reformas, concebe-se a educação como o meio de inserção do indivíduo no mundo global. De acordo com os programas de ensino, um dos pressupostos que norteou o processo de elaboração dos programas foi o de permitir a formação de cidadãos que reconhecem e são capazes de conviver com a pluralidade de valores.

Nesta vertente, as reformas levadas a cabo incidiram sobre o reforço da componente da História local, a profissionalização do ensino, o conhecimento de línguas estrangeiras e sobretudo, o aprofundamento das relações de convivência e de tolerância. O pluralismo político e social defendido nestes documentos tem vindo a contribuir para a liberalização do ensino, permitindo a entrada de várias editoras e, consequentemente, a diversidade de manuais escolares e de outros meios de ensino.

Em função desses pressupostos curriculares, a abordagem do colonialismo no sistema de ensino agora em vigor regista uma tendência crítica e “formativa”. Refere-se ao ensino de memórias do passado que possam contribuir para o desenvolvimento da capacidade de o aluno adquirir um profundo conhecimento de si próprio e da sua cultura, como condição para o conhecimento dos outros. Só assim poderá permitir o desenvolvimento do espírito de tolerância, o respeito pelas diferenças, rumo à inserção num mundo global.

De facto, os dados da investigação revelaram que é possível encontrar nesses documentos uma visão menos dicotómica e rígida do colonialismo. Apontam-se como aspetos positivos a herança de um conjunto de infraestruturas, a influência colonial na divisão político-administrativa, a difusão da ciência e das línguas europeias, entre outros. Ainda, os atuais manuais e programas escolares procuram distanciar-se da anterior abordagem tipicamente socialista e monolítica, para enfatizar o pluralismo de ideias, segundo uma abordagem democrática e formativa.

Apesar desse esforço de procurar distanciar-se da abordagem socialista do colonialismo nos documentos em análise é visível que as grandes narrativas permanecem as mesmas, apesar da mudança de linguagem. Nesta vertente, o colonialismo português de forma mais específica continua a ser descrito como a causa do subdesenvolvimento de Moçambique pois entende-se que este ainda não era um país industrializado. Assim, a gestão das suas colónias passou por conta das companhias privadas e concessionárias tendo, por isso, incrementado dupla exploração. Permanece ainda nestes documentos uma forte componente da abordagem da História que incide sobre o movimento socialista e seu contributo para a Luta Armada de Libertação Nacional. Por um lado, o desencadeamento dessa luta contou com apoio de muitos países africanos, principalmente os de colonização inglesa e francesa, por outro lado, beneficiou de apoio de países Latino-Americanos e Asiáticos de ideologia socialista. É referido por exemplo, o apoio prestado aos guerrilheiros da Frelimo pela Argélia e Tanzânia, tanto no treinamento militar, quanto no estabelecimento de bases de guerrilha (Sopa, 2011). A referência sobre a Luta Armada é enfatizada nesses documentos como um exemplo a ser seguido pelas gerações vindouras. Da mesma forma, os programas orientam para a realização de pesquisas e entrevistas com personalidades que se destacaram no processo de lutas anticoloniais.


Este trabalho é apoiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Financiamento Plurianual do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade 2020-2023 (que integra as parcelas de financiamento base, com a referência UIDB/00736/2020/, e financiamento programático, com a referência UIDP/00736/2020).

Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons – Atribuição-Não Comercial 4.0 Internacional.

 

Referências bibliográficas

Jamal, C. M. (2019). Representações do colonialismo nos Manuais Escolares de História do 1º ciclo do ensino secundário geral no período pós-independência em Moçambique. Tese de Doutoramento, Universidade do Minho, Braga, Portugal. Retirado de http://hdl.handle.net/1822/65722