Partilhar é cuidar?
21 October 2019
É provável que você já tenha ouvido falar da “Economia da Partilha”. O termo tem sido divulgado com mais vigor depois do sucesso de empresas como a Airbnb ou a Uber. Embora a ideia da partilha como fundamento de uma economia alternativa não seja nova, o surgimento destas plataformas digitais contribuiu para que o conceito fosse intensamente alargado. Atualmente envolve uma grande diversidade de atividades que visam o lucro e outras com finalidade não-lucrativa geralmente valendo-se da ideia de dar acesso a recursos não utilizados através de um consumo colaborativo.
Texto de Rodrigo Saturnino (pós-doutorando e investigador do CECS)
E-mail: rodrigosaturnino@gmail.com
O princípio basilar desta economia retém a ideia de que, se temos alguma em coisa em “excesso”, podemos partilha-lho. Assim, ao darmos uso a este bem, estaríamos a contribuir para que outras pessoas tenham acesso a ele e também estaríamos a colaborar na criação de uma economia sustentável.
Dentro deste modelo é possível partilhar uma grande quantidade de bens e serviços. Podemos partilhar um quarto que está sem uso na nossa casa e ganhar algum dinheiro. Pode-se partilhar uma boleia de Lisboa até o Porto e assim não se viaja sozinho e economizamos com o combustível. Se temos algum tempo de sobra, podemos oferecer alguma prestação de serviço nos Bancos de Tempo e receber em troca o serviço de outra pessoa. Músicas, livros e filmes podem ser partilhados através dos famosos torrents ou por streaming. Ferramentas que estão sem utilização na sua arrecadação podem ser emprestadas entre vizinhos por um curto período de tempo. É possível também partilhar seu espaço em forma de pet sitting e cuidar de um animal doméstico enquanto o respectivo tutor está ausente.
Como sabemos, estas atividades não surgiram com a Internet. A própria ideia de rede de computadores nasceu a partir de valores sociais que pertencem à nossa vida quotidiana (comunidade, colaboração e acesso). O que diferencia o modelo desta economia que experimentamos hoje é a amplificação da escala de consumo, a organização de dados e a sistematização da confiança entre desconhecidos. Com as plataformas digitais, empresas e consumidores conseguem oferecer serviços e produtos (pagos ou gratuitos) em níveis globais a partir de recursos que garantam, minimamente, um controlo entre os pares a fim de criar a sensação de segurança durante os processos.
O que a Economia da Partilha traz de positivo é a proposta de criar uma alternativa a modelos tradicionais baseados no capitalismo em que a participação da cadeia de produção estaria retida nas mãos de grandes conglomerados económicos. Ela traz consigo a ideia de incluir consumidores dentro de uma nova cadeia, transformando estas pessoas em produtores também. Nos serviços que não incluem ganho financeiro, a prática da partilha serviria de apoio na redução do consumo. Se eu não tenho um berbequim e não tenho dinheiro para comprar, posso utilizar uma app e buscar um que esteja disponível para empréstimo. Certo? No caso em que a partilha inclui a prestação de serviços envolvendo o dinheiro, ela não só reduziria os níveis de consumo, como também favoreceria quem oferece e quem solicita. De um lado, quem presta um serviço contrai ganhos financeiros sob uma coisa que supostamente estaria em desuso e por outro quem consome teria acesso a um serviço por um preço que, alegadamente, estaria abaixo do valor do mercado comum.
A Economia da Partilha é flexível e, por conseguinte, polissêmica. A introdução das plataformas digitais na sua dinâmica tem gerado diversos debates sociais e políticos sobre os seus efeitos e as suas consequências quando ela passa a se orientar apenas pelo viés lucrativo. Veja a questão da propriedade e da precariedade laboral. Do lado de quem oferece um serviço, pressupõe-se que só pode participar das suas práticas quem tem alguma coisa para oferecer, logo quem não possui estaria fora dela. Uma alternativa para a pessoa não-possuidora é oferecer uma “coisa” típica do mercado de trabalho: a sua mão-de-obra. Nesse sentido, como acontece no caso da Airbnb e da Uber, as pessoas se tornariam gestores da propriedade alheia, sendo pagas pelos proprietários por isso. Esta modalidade de outsorcing tenderia a reforçar desigualdades criando um paradoxo conceptual. Se por um lado ela pretende ser alternativa a um sistema económico desigual, por outro ela acaba por convergir a este mesmo modelo quando sua dinâmica reflete condições sociais externas em que os desfavorecidos permaneceriam em condições de precariedade laboral sem direitos trabalhistas assegurados. No ramo do alojamento local promovido pela Economia da Partilha a questão da gentrificação tem surtido ainda sérias consequências para os não-possuidores que, por força do mercado, são obrigados a entregar as casas alugadas em que habitam em prol da entrada do proprietário na exploração turística do seu bem.
No âmbito social, o modelo da Economia da Partilha, como eu disse acima, está fundamentado na confiança. Sem ela, os processos não se realizam. Dito isso, devemos salientar que grupos historicamente discriminados tendencialmente estariam mais susceptíveis a penalizações sociais seja enquanto grupo que oferece um serviço ou grupo que consome. Esta situação precede ao campo da partilha mediada pela Internet. Não são poucos os casos de discriminação negativa por raça, cor, género e orientação sexual ocorridos no mercado comum. A situação transpõe-se para o universo da Economia da Partilha na medida em que o campo digital, principalmente com o surgimento das redes sociais, não permite o anonimato e possibilita a aplicação de filtros. Portanto, grupos tradicionalmente prejudicados por processos discriminatórios continuariam afetados no interior da Economia da Partilha, como já demonstraram em estudos científicos realizados por autores como Edelman, Luca e Svirsky (2017) e Farajallah, Hammond e Pénard (2016), sobre o preconceito que pessoas negras e árabes sofrem nas plataformas Airbnb, Uber e Blablacar[1].
Embora seja um fato, a estrutura social da discriminação no interior da Economia da Partilha não anestesia o movimento de agência e de resistência. Iniciativas com o objetivo de aliviar tais constrangimentos tem se tornando uma oportunidade direcionada a pessoas que ainda sofrem com o racismo, a homofobia e a misoginia. No ramo dos alojamentos locais, Stefan Grant criou a Noirbnb, uma plataforma de hospedagem local para pessoas negras. O serviço foi criado depois que Stefan e alguns amigos utilizaram a Airbnb para se hospedar em Atlanta (EUA) em 2015 e foram considerados pelos vizinhos como um grupo de ladrões por se tratar de pessoas afrodescendentes. O MisterB&B também seguiu com uma lógica parecida. Quando Mathieu Jost, co-fundador da plataforma e seu companheiro reservaram um quarto num apartamento partilhado em Barcelona. Mathieu sentiu que a anfitriã não estava confortável com a presença de dois homens gays hospedados na sua casa. Desta má experiência, ele criou um serviço para partilha de alojamento local entre homens gays a fim de melhorar a experiência destes viajantes. A ideia também era a de fortalecer o sentido de “comunidade gay” dando oportunidades a anfitriões gays de alugarem o seu espaço para outros gays.
No ramo da mobilidade urbana a Blablacar criou uma modalidade entre mulheres a fim de criar viagens mais seguras. Não são poucos os casos de mulheres que são vítimas de abuso sexual em viagens da Uber (leia esta notícia do Jornal Público). As viagens chamadas pela Blablacar de “Apenas Mulheres” permite às viajantes planear uma viagem onde tanto a condutora como as passageiras são mulheres.
Estas iniciativas resolvem o problema do preconceito, da discriminação negativa e dos abusos sexuais? Não. No entanto, demonstram que estas situações motivam as vítimas e as próprias empresas a estabelecerem alternativas e medidas que permitam a estas pessoas participarem de modo seguro nas dinâmicas desta economia. Estas iniciativas não só reafirmam sérios problemas que devemos combater no nosso dia-a-dia, como também exibem como situações negativas podem tornar-se motivos para a criação de novos nichos de negócios.
Não há dúvida que o modelo da Economia da Partilha tem servido como recurso de melhoria econômica tanto para quem oferece como para quem consome algum serviço. Ela também ressalta em si própria uma vontade ecológica considerando que um dos seus objetivos é diminuir o ciclo da apropriação particular de um bem ou de serviço, conduzindo este consumo para um conceito sustentável. No entanto, não é possível deixar de lado a crítica que se deve fazer aos caminhos que tal modelo tem percorrido quando o assunto é o lucro. No seu estado microssocial, a Economia da Partilha se consumava em escalas reduzidas. Com a entrada da Internet e da apropriação de valores sociais sobre a comunidade, o acesso e a colaboração, é certo admitir que a penetração deste tipo de modelo beneficia um número muito mais elevado de pessoas se comparado aos modelos analógicos que vigoravam nos períodos que antecedem a explosão das tecnologias digitais. No entanto, esta expansão traz consigo efeitos e desafios. É preciso refletir sobre os riscos que enfrentamos quando proprietários e empresas como a Airbnb e a Uber orientadas exclusivamente para o lucro utilizam valores essenciais para a cidadania e a vida em sociedade como escudo protetor dos seus reais interesses. É preciso pensar formas de combater desigualdades sociais promovidas pela Economia da Partilha, deixando claro que o otimismo sobre os seus benefícios só poderia se consumar se, de facto, eles fossem partilhados de modo alternativo e não como uma reprodução do discurso capitalista.
[1] Para uma lista completa sobre esta assunto poderá consultar no blog do projeto: https://economiadapartilhaemportugal.wordpress.com/2018/06/04/mercado-da-discriminacao/
Referências
Edelman, B., Luca, M., & Svirsky, D. (2017). Racial Discrimination in the Sharing Economy: Evidence from a Field Experiment. American Economic Journal: Applied Economics, 9(2): 1–22.
Farajallah, M., Hammond, R. G., & Pénard, T. (2016). What Drives Pricing Behavior in Peer-to-Peer Markets? Evidence from the Carsharing Platform BlaBlaCar. SSRN Electronic Journal. Retirado de https://ssrn.com/abstract=2828046