Racismo e Educação: os finais felizes para sempre começam no recreio

19 June 2020

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Nesta breve reflexão apresentamos algumas perspetivas que nos remetem para a persistência de racismo nas sociedades contemporâneas. Após um breve enquadramento sobre o racismo sistémico, o racismo aversivo e o modo como as representações construídas durante o colonialismo moldam as relações interculturais atuais, convocamos um exemplo de uma atividade desenvolvida no quadro da disciplina de Cidadania no 5º ano do ensino básico, que serviu como ponto de partida para o debate com os estudantes, sobre a importância de dizer não, levantar a voz e contribuir para a discussão e contestação de injustiças, desigualdades sociais e racismo.

Texto de Isabel Macedo (investigadora do CECS)
E-mail: isabel.macedo@ics.uminho.pt

James Eades (Unsplash)

O racismo sistémico, flagrante e subtil, nas sociedades atuais

Os protestos após a morte de George Floyd, que se espalharam primeiro pelos Estados Unidos e depois pelo mundo, têm vindo a destacar os legados da escravatura, do colonialismo e da violência contra a comunidade negra e contra outras minorias. O número de manifestações nas últimas semanas aumentou o debate acalorado sobre o racismo sistémico.

O racismo sistémico é muito mais do que uma questão de preconceito racial e de intolerância individual. Para Feagin (2006) constitui uma realidade material, social e ideológica que está inculcada nas principais instituições dos EUA. Na sua opinião, embora os analistas sociais reconheçam as condições ainda difíceis enfrentadas por certos grupos, como a discriminação contra afro-americanos na atualidade, não avaliam o quão historicamente profunda e sistémica tem sido esta opressão racial, permanecendo até hoje. Trata-se de uma realidade que persiste de forma continuada e atravessa a sociedade americana, ao longo de vários séculos, sem as transformações amplas e fundamentais que muitos analistas sociais sugerem terem acontecido. Embora se reconheçam algumas mudanças, o racismo sistémico hoje mantém inúmeras características básicas que perpetuam as opiniões, tendências, ações e intenções raciais de muitas gerações brancas anteriores (Feagin, 2006). Devido ao seu poder e centralidade na sociedade americana, ainda racialmente hierárquica, a opressão de brancos sobre as minorias sociais terá moldado consideravelmente todos os outros tipos de opressão racial, mais tarde desenvolvidos dentro dessa sociedade.

Para Kovel (1970/2001), autor que numa análise psicanalítica do racismo nos EUA cria o conceito de racismo aversivo, o grande problema da sociedade americana era o de, depois da conquista dos direitos civis, incluir os negros na equação da democracia. O racismo aversivo representa uma forma de enviesamento subtil e, muitas vezes, não intencional, que caracteriza muitos americanos brancos que possuem fortes valores igualitários e acreditam não serem preconceituosos. Os racistas aversivos possuem também sentimentos e crenças raciais negativos, dos quais não têm consciência ou tentam dissociar da sua autoimagem não-preconceituosa. Estes sentimentos negativos que os racistas aversivos têm em relação aos negros não revelam hostilidade ou ódio aberto. As suas reações envolvem desconforto, inquietação, aversão e, às vezes, medo. Mas ao mesmo tempo, consideram aversiva também qualquer sugestão de que eles são preconceituosos. As consequências do racismo aversivo são comparáveis às do racismo tradicional: a restrição de oportunidades a outros grupos e o apoio a um sistema que se acredita justo nos princípios, mas que perpetua as vantagens sociais e económicas dos grupos maioritários sobre os grupos minoritários.

Franz Fanon (1952/2008, pp. 65-66) dizia: “eu não posso dissociar-me do futuro que é proposto ao meu irmão. Cada um dos meus actos me compromete, como homem. Cada um dos meus silêncios, cada uma das minhas covardias me revela como um homem”. Muito mudou desde que Fanon escreveu Pele negra, máscaras brancas, mas as estruturas de opressão e injustiça permanecem. A ideia de império molda a identidade nacional atual de vários países, tendo um papel central no modo como África e Ásia são representadas e vistas, quer do ponto de vista psicológico, quer político e cultural (Sardar, 1952/2008). De facto, o domínio colonial direto pode ter desaparecido, mas o colonialismo, nas suas inúmeras máscaras opressivas – culturais, económicas, políticas ou baseadas no conhecimento – permanece.

Na Europa, o passado colonial está incorporado não só na cultura material, em monumentos, bibliotecas, arquitetura e coleções de museus, mas também em imagens e pessoas, moldando a vida política, económica, artística e intelectual, as práticas linguísticas e sentimentos de pertença. Informa ainda a retórica e as categorias mobilizadas quando os europeus lidam com os migrantes de outros continentes e as expressões de racismo que observamos na atualidade (L’Estoile, 2008). Para melhor compreendermos as perceções em torno do conceito de racismo, é essencial termos em consideração que a Europa se construiu e construiu também a imagem dos seus ‘Outros’ tendo por base complexos processos de conquista, de colonização, de formação de impérios, de permanência de europeus em outras partes do globo, de lutas nacionalistas por parte dos povos colonizados e de descolonização. Portanto, foi num contexto de opressão, de dominação e, em grande parte, de segregação social e racial que a Europa que conhecemos hoje se foi formando.

Embora o quadro concreto do racismo seja essencialmente nacional (depende do passado histórico, político, sociocultural de cada país), os processos que explicam a sua extensão e as suas transformações contemporâneas são quase os mesmos em toda a Europa. Há uma mudança na ação social, política e cultural geral e de acordo com as mesmas tendências, mas que leva a diversas expressões de racismo dependendo do país em análise (Wieviorka, 1998).

Muito do comportamento discriminatório quotidiano, quer ao nível institucional quer ao nível inter-individual, é atualmente marcado por formas mais veladas e sofisticadas de racismo, muitas vezes impercetível, que aparentemente não violam a norma anti-racista. Estas atitudes raciais são manifestadas de formas indiretas muito diversas, mostrando um deslocamento do racismo associado a fatores biológicos para fatores de ordem cultural (Deschamps et al., 2005).

O racismo contemporâneo é menos sobre crenças na superioridade biológica/inferioridade dos grupos, e cada vez mais sobre a ideia de uma hierarquia cultural. Justifica e legitima as desigualdades entre os grupos, não com base na biologia ou cor da pele, mas com base em alegações de que certos grupos transgridem os valores sociais fundamentais, como a ética de trabalho, a autoconfiança, a autodisciplina e a realização individual. Apesar da sua condenação pelos normativos legais e sociais, os racismos flagrante e subtil persistem nas nossas sociedades (Cabecinhas, 2007; Macedo, 2017; Ramos, Pereira & Vala, 2019).

 

O papel da educação na discussão sobre racismo

As escolas podem constituir contextos privilegiados para a discussão, desde tenra idade, sobre preconceitos, estereótipos sociais e expressões de racismo. Neste contexto deparamo-nos com diversas tarefas que são desenvolvidas com as crianças que nos rodeiam. Exemplo disso é o caso de uma professora de Cidadania que, recentemente, atribuiu como tarefa aos seus alunos do 5º ano refletir sobre o vídeo “História sobre uma coisa tão pequena que nos pode salvar”. Neste vídeo de oito minutos do Programa Conta um Conto da RTP (2019), Pedro Ramôa, em Português, e Amílcar Furtado, em Língua Gestual Portuguesa, contam que estamos habituados a ouvir histórias com finais felizes, mas nem sempre o final é feliz. Histórias que todos conhecemos, como a do patinho feio, que é discriminado pelos irmãos e que se transforma num cisne, surgem diariamente em livros, manuais escolares, em filmes e em outros meios. O final será, aparentemente, feliz. Mas como dizemos a uma criança que nem sempre o patinho do nosso quotidiano, visto como feio, tem um final feliz? A propósito deste vídeo, que serve de mote para discutir o poder de dizer não, uma criança de 11 anos escreve: “é difícil dizer não, mas esta palavra pode ajudar a contrariar injustiças e maldades, desde que somos pequenos, no recreio por exemplo. Acho que o ‘não’ pode unir países inteiros contra injustiças e mudar o mundo”.

O que vemos atualmente em várias partes do mundo é o culminar de séculos de repressão, sentimentos de injustiça e desigualdade. Pessoas, negras e brancas, que escolhem dizer não, levantar a voz e provocar a discussão e a atenção ao racismo, sistémico, que persiste em vários lugares no mundo.

Mas como envolver jovens nesta discussão, contextualizando-a, enquadrando-a num passado de colonialismo, escravatura, dominação e violência? Como explicar a uma criança de 11 anos o que aconteceu a George Floyd? Diria, nas palavras de Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, “temos de falar sobre racismo e temos de agir”. Temos de falar sobre racismo na sala de aula.

A reflexão sobre vídeos, como aquele referido anteriormente, sobre imagens ou filmes, pode ser proveitosamente informada por discursos sociais que nos lembram que todos os textos são situados e que todas as leituras são parciais, levando-nos a desenvolver uma abordagem crítica, envolvendo distanciamento, problematização e análise. Os professores, de diferentes níveis de ensino, podem mobilizar estas ferramentas para aprofundar o conhecimento dos alunos sobre a diferença, melhorar as suas competências analíticas, aprofundar a sua compreensão e ampliar as suas visões de outros discursos e práticas culturais, bem como dos discursos e práticas que os cercam diariamente. O resultado desse ciclo reflexivo pode ser a exploração da própria identidade e a construção das competências necessárias para interações interculturais que sustentem a cidadania (Cabecinhas & Macedo, 2019).

Será necessário um processo educativo que procure, à semelhança da professora de Cidadania, não apenas preparar o estudante para o mundo vindouro, mas criar as condições apropriadas para que este seja exposto a uma parte do mundo e aprenda a refletir criticamente sobre os conteúdos mediáticos com os quais se confronta diariamente. Para desafiar os modos como o racismo molda o pensamento e a ação, não se pode entender a sala de aula como um espaço inocente onde se deve evitar a reflexão sobre racismo e estereótipos sociais. Importa sim, fazer da sala de aula um espaço performativo, envolvendo as crianças na discussão e contestação dos lugares comuns do racismo.

 


Este trabalho é apoiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Financiamento Plurianual do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade 2020-2023 (que integra as parcelas de financiamento base, com a referência UIDB/00736/2020/, e financiamento programático, com a referência UIDP/00736/2020).

Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons – Atribuição-Não Comercial 4.0 Internacional.

 

Referências bibliográficas

Cabecinhas, R. & Macedo, I. (2019). (Anti)racismo, ciência e educação: teorias, políticas e práticas. Medi@ções, 7(2), 16-36. Retirado de http://mediacoes.ese.ips.pt/index.php/mediacoesonline/article/view/242/pdf

Cabecinhas, R. (2007). Preto e Branco: A naturalização da discriminação racial. Porto: Campo das Letras. Retirado de http://hdl.handle.net/1822/37335

Deschamps, J.-C., Vala, J., Marinho, C., Costa Lopes, R. & Cabecinhas, R. (2005). Intergroup relations, racism and attibution of natural and cultural traits. Psicologia Política, 30, 27-39. Retirado de http://hdl.handle.net/1822/2710

Fanon, F. (1952/2008). Black Skin, White Masks. Londres: Pluto Press.

Feagin, J. (2006). Systemic racism, a theory of oppression. Londres: Routledge.

Kovel, J. (1970/2001). White racism: a psychohistory. Nova Iorque: Pantheon.

L’Estoile, B. (2008). The past as it lives now: an Anthropology of colonial legacies. Social Anthropology, 16(3), 267-279. https://doi.org/10.1111/j.1469-8676.2008.00050.x

Macedo, I. (2017). Migrações, Memória Cultural e Representações Identitárias: a literacia fílmica na promoção do diálogo intercultural. Tese de doutoramento em Estudos Culturais, Universidade do Minho, Braga, Portugal. Retirado de http://hdl.handle.net/1822/48712

Ramos, A., Pereira, C. R. & Vala, J. (2019). The impact of biological and cultural racisms on attitudes towards immigrants and immigration public policies. Journal of Ethnic and Migration Studies. https://doi.org/10.1080/1369183X.2018.1550153

Sardar, Z. (1952/2008). I think it would be good if certain things were said: Fanon and the epidemiology of oppression. In F. Fanon, Black Skin, White Masks (pp. vi-xx). Londres: Pluto Press.

Wieviorka, M. (1998). La nouvelle ère du racisme. In H. G. de Araújo; M. Santos & C. Seixas (Eds.), Nós e os Outros: A exclusão social em Portugal e na Europa (pp. 133-153). Porto: S.P.A.E.