Será que o distanciamento social é mesmo social?
25 May 2020
A epidemia do coronavírus veio bater à nossa porta e rapidamente se metamorfoseou em pandemia. O coronavírus não fez mais do que seguir os caminhos pelos quais os Homens enveredaram. Foram eles, por meio dos seus incessantes e frenéticos movimentos, que o difundiram nos quatro cantos deste mundo. A resposta foi tão global quanto o foi o contágio. Seguindo à letra as recomendações da Organização Mundial da Saúde, inúmeros países decretaram o estado de emergência e impuseram medidas de contenção, nomeadamente o confinamento das populações e o distanciamento social entre pessoas. É como se os Homens se tornassem estrangeiros para si próprios. Acabaram por interiorizar e incorporar nos seus hábitos estas medidas, ao ponto que o contágio pelo medo se tornou mais corrosivo do que o contágio pelo próprio vírus. No entanto, a natureza social do Homem não se deixou afetar nem infetar pela ideologia reinante. O presente coronavírus não pôs fim ao indomável «querer viver» do Homem, nem à «fome de pele» que sente, nem à sua vontade de partilhar com os outros sentimentos comuns.
Texto de Jean-Martin Rabot (investigador do CECS)
E-mail: jmrabot@ics.uminho.pt
Numa guerra, e as metáforas guerreiras não faltam quando evocamos o novo coronavírus, há sempre vítimas colaterais. Não estou a referir-me às populações civis, nem às camadas mais desfavorecidas da sociedade, mas à própria vida social e às próprias relações sociais.
A fragilização dos laços sociais não é assunto novo para os sociólogos; Zygmunt Bauman utilizava o conceito de liquidez para qualificar o caráter efémero das instituições e das relações sociais atuais, quer se trate do amor, do Estado, da moral ou ainda dos contratos. E quase cem anos antes de Bauman, Simmel já tinha estabelecido uma correspondência entre a liquidez do dinheiro e o afrouxamento das relações pessoa a pessoa. No seu livro: O dinheiro, Simmel mostrou que o dinheiro, enquanto símbolo abstrato de troca e enquanto equivalente geral, atuou em dois sentidos, simultaneamente diferentes e complementares. Ao mesmo tempo que libertou os servos da subordinação aos senhores e das antigas relações pessoais, o dinheiro tornou os homens modernos mais dependentes dos processos de abstração e de despersonalização da nova economia monetária. Max Weber, por sua vez, encarou o individualismo moderno como consequência de um processo que denominou de racionalização da vida e de desencantamento do mundo.
O confinamento dos indivíduos (de in-dividis, a unidade indecomponível, o que não pode ser mais dividido) e o distanciamento social caracterizam a modernidade, que se iniciou com o Renascimento e se prolongou com o Iluminismo do século XVIII, a revolução industrial do século XIX e os regimes, quer democráticos, quer totalitários do século XX. Mais precisamente, o individualismo, a privacidade, a intimidade, os distanciamentos em relação aos outros resultam de um processo civilizacional, destacado por Norbert Elias, nomeadamente com a longa aprendizagem da domesticação dos comportamentos e dos costumes. Fazer abstração dos outros, contorná-los, evitar todo o contacto representavam outras tantas atitudes que eram consubstanciais ao individualismo que decorreu deste processo civilizacional.
A pandemónica pandemia, que veio insinuar-se nas nossas vidas e separar os Homens, não fez mais do que exacerbar uma tendência inaugurada pela modernidade. Como no-lo recorda Adorno, no seu livro Minima Moralia, a própria relação social teve como fundamento o desprendimento: «o tacto como a única saída permitindo salvaguardar as relações entre homens alienados». O tacto impôs-se ao contacto físico, mesmo que este não tenha desaparecido por completo do mapa das experiências humanas, como no-lo testemunham as cotoveladas, as pancadas e os empurrões sofridos nos centros comerciais e nos estádios de futebol, ou ainda quando observamos as relações que os Homens tecem com o divino, sendo que estes nunca se contentaram com a sua mera representação, procurando sempre experienciá-lo, vivenciá-lo ou tocá-lo, como acontece nestes grandes centros de peregrinação que são Fátima, Santiago de Compostela ou Lourdes.
O distanciamento social atual, que resulta das medidas de prevenção e de combate à nova epidemia de coronavírus (de epi-demos, sobre o povo, o que circula no povo) inscreve-se, pois, numa tendência geral da sociedade ocidental. As medidas de confinamento e o distanciamento social que daí resulta foram impostos a mais da metade da humanidade, na base da instilação do medo e na base também da infantilização das pessoas, consideradas sempre no seu estado de minoria, segundo a expressão do filósofo Kant, ou seja, como sendo incapazes de aceder ao estado de adulto, à maioria da razão soberana, à autonomia (de auto-nomos, que encontra as normas em si mesmo) do livre arbítrio. Ora, a submissão do indivíduo aos desígnios de uma razão sanitária e social, da qual os homens de ciência e os políticos seriam os únicos depositários, é talvez um «vírus que mata o espírito da democracia», como no-lo disse Joshua Mitchell, numa entrevista concedida ao Le Figaro, de 20 de abril de 2020: «Méfions-nous du doux despote qui veut nous protéger de la mort à tout prix».
O isolamento nada tem de natural. No entanto, encontramo-lo abundantemente expresso nalguns romances, tais como Robinson Crusoé (1719), de Daniel Defoe; Sexta feira ou os Limbos do Pacífico (1967), de Michel Tournier e inspirado no livro de Defoe; Vinte Mil Léguas Submarinas (1869-1870), de Jules Vernes; O Deserto dos Tártaros (1940), de Dino Buzzati. Encontrámo-lo também na própria vida social dos Homens, tais como na tradição do monaquismo ou, contemporaneamente, nas chamadas telerrealidades, à semelhança do Big Brother.
Nestes exemplos de extremo isolamento social, o caráter social do Homem fica sempre salvaguardado. Robinson encontrou um alter ego, Sexta-feira, para o socializar e cristianizar segundo as normas do Ocidente, no romance de Defoe. Na adaptação do romance de Tournier, o papel de Robinson é de fazer de Sexta-feira um igual, e mesmo um irmão. No romance de Verne, o professor Aronnax e os seus dois co-prisoneiros no Náutilus beneficiavam do contacto e dos conhecimentos do Capitão Nemo e dispunham de uma biblioteca de 12000 livros para conservarem uma ligação à humanidade. Drogo, o herói do romance de Buzzati, fechado num forte situado no limiar de uma terra inculta, aproveitou a espera de um inimigo invisível, que não era mais do que a figura da sua própria morte, agarrando-se às rotinas da guarnição e aos rituais da vida quotidiana, de essência social.
No caso do confinamento voluntário nos conventos, os monges (de mono, só), enclausurados nas suas celas (palavra que deu origem à de célula, a unidade estrutural dos seres vivos), integram plenamente a comunidade de todos os cristãos, a comunhão dos santos, que inclui os vivos e os mortos e incarna uma forma de solidariedade que transcende os determinismos espácio-temporais.
Por fim, nas telerrealidades, é por meio do confinamento dos indivíduos em espaços restritos e fechados que se processa a relação social. Pois, mesmo sendo premente nelas uma forma de egocentrismo bárbaro e de darwinismo social na luta pela sobrevivência, uma forma de panoptismo no controlo de todo o movimento, uma forma de obscenidade hiper-real na «sobre-exposição à transparência do mundo» (Baudrillard), o indivíduo, por mais isolado que esteja, só existe em função do outro. No fundo, trata-se de inventar uma vida na qual cada um encontra o seu lugar, onde qualquer um se pode reconhecer nos outros, e isso constitui uma das premissas de toda a forma de socialização, como bem o viu Simmel, no seu texto: «Como a sociedade é possível?».
No caso do confinamento e do distanciamento social impostos em virtude da crise sanitária em resposta à pandemia da COVID 19, as coisas não se processam de outra forma. É verdade que os gestos-barreira, como por exemplo o respeito de uma distância mínima de um a dois metros em relação ao outro, não propiciam um forte relacionamento social. Praticados mecanicamente e compulsivamente, estes gestos-barreira até inibem as raras pessoas desejosas de se aproximar dos outros e de transgredir as regras. O peritos – refiro-me aos políticos e aos médicos, e vimos que os primeiros se submeteram cegamente aos diagnósticos e às recomendações dos segundos – incutiram o medo do outro nas pessoas, fazendo com que o encarássemos como uma ameaça e um perigo, ao ponto que, na hora do desconfinamento, muitas pessoas tivessem preferido manter-se no isolamento, o que levou os psicólogos e os sociólogos a falarem da tentação do casulo, do síndroma da cabana ou ainda do síndroma do prisoneiro.
No entanto, o Homem é por natureza uma animal social, como o disse Aristóteles, há 2400 anos. Os comportamentos de afastamento do outro são, neste período de pandemia, meramente casuais e acabarão por desaparecer mais cedo ou mais tarde.
As epidemias afetam os corpos individuais assim como o corpo social. Com a proscrição dos gestos familiares mais triviais, à semelhança do abraço, do beijo ou do aperto de mão instauraram-se hábitos de desconfiança mútua, de medo recíproco, assim como manobras de evitamento do outro. Mas este distanciamento é mortífero, porque se faz em sentido único, sendo o resultado de uma imposição unilateral por parte das autoridades sanitárias e políticas. Não se trata de um distanciamento inerente a toda a vida social e proveniente da própria aproximação ao outro. O sociólogo americano Erving Goffman recordava-nos que o aperto de mão é um ritual de acesso ao outro, que confere ao indivíduo a possibilidade de se abrir ao outro e de resguardar-se dele, de criar um laço social ou de o desfazer. São esses tipos de rituais que permitem aos indivíduos e aos grupos aos quais pertencem interagir segundo o esquema da conjunção e da disjunção (Octavio Paz), da unidade e da separação (Simmel), da atração e da repulsão (Maffesoli), tornando assim a vida social possível.
Com o alastrar da presente pandemia, os Homens ficaram confinados (mais da metade da humanidade!), mas não socialmente finados. Basta ler o Diário de Adão, de Mark Twain (1893), para percebermos que o Homem prescinde da perfeição do paraíso e da segurança da insulação: «Bendita seja a catástrofe que me uniu a ela [Eva]». É assim que assistimos a múltiplas manifestações coletivas que desafiaram as injunções dos cientistas e dos políticos. A imposição de gestos-barreira não deram cabo nem do espírito religioso, nem do espírito da festa, nem do espírito de revolta. Retomo esses três exemplos.
Primeiro, o espírito religioso: tal como o nascimento e o nutrir-se, a morte não constitui apenas um facto biológico, mas antes um acontecimento social, que exige uma atuação coletiva, como o explicou o sociólogo francês, Émile Durkheim. Ora, com o confinamento forçado, os Homens foram privados da manifestação coletiva da sua espiritualidade. As igrejas foram fechadas, os cultos foram cancelados e as inumações (de in-humus, pôr em terra) tiveram de se realizar na mais estrita intimidade, quando não de forma anónima, sem familiares nenhuns. Certos rituais funerários, como a toilette do defunto, praticados nas religiões muçulmana e judaica, foram proibidos. Ora, nestas religiões, trata-se de um «último dever» (Le Figaro, do 23 de março de 2020) dos vivos em relação aos mortos. Pois, como no-lo disse magistralmente o pai fundador da sociologia, Auguste Comte, no seu Curso de filosofia positiva, «os mortos governam os vivos». Da mesma forma, as cerimónias fúnebres, à semelhança do velório, e sobretudo da missa do enterro, que para o católico exprime a oração que a Igreja dirige a Cristo para a salvação da alma do defunto e para apoiar espiritualmente a família na hora da despedida, foram reduzidas à sua expressão mais básica. Mesmo assim, com estas limitações todas, vimos que as diferentes religiões souberam reinventar-se (de in-venire, chamar ou atualizar aquilo que já existe), adaptar-se às novas condições impostas pelo confinamento: a celebração da Páscoa cristã e judaica, assim como a do Ramadão muçulmano, foram partilhadas nas redes sociais, procedendo-se dessa forma a uma reconstrução do laço social, abrindo um espaço para a expressão coletiva das emoções. Assim, foram celebradas missas no modo «drive in», com centenas de fiéis confinados nos seus automóveis, como aconteceu em França, na cidade de Châlons-en-Champagne, no domingo 17 de maio de 2020. Pois, como bem o apontou Vilfredo Pareto, o sociólogo italiano, a necessidade de exteriorizar os sentimentos constitui uma das manifestações fundamentais da natureza humana. É essa necessidade que certamente explica alguns extravasamentos por parte de padres que celebravam missas com a presença de fiéis, desobedecendo assim às medidas decretadas em virtude do estado de emergência, como aconteceu em Pedorido, Castelo de Paiva, no domingo, 26 de abril de 2020.
Segundo, o espírito festivo: as festas correspondem a uma rotura com a rotina do dia a dia, as obrigações sociais e o trabalho. Permitem ao indivíduo sair do tempo profano para aceder ao tempo sagrado. Muitas vezes exprimem-se por meio da transgressão da ordem e mesmo da violência. Essa violência não pode ser julgada do ponto de vista da moral, mas do ponto de vista dos seus efeitos sobre a moral, dado que reforça o estar-junto no seio de uma determinada comunidade, como bem o constatou Durkheim, na obra As formas elementares da vida religiosa. Pois, a função principal das festas é a de aproximar as pessoas e de socializar os Homens. Nos tempos da COVID 19, seria útil interrogarmo-nos sobre a utilidade de uma separação prolongada entre os seres. O distanciamento social é, por assim dizer, insuportável para todos aqueles que estavam a viver no regime da «intensificação da vida nervosa» (Simmel) característico das metrópoles, no regime da fúria dionisíaca do consumerismo, no regime das vibrações dos festivais musicais, no regime do êxtase das raves, no regime dos tumultos dos recintos desportivos, no regime aglutinador do turismo de massa. Com efeito, inúmeras formas de ajuntamento proporcionam um hedonismo que só pode existir se for emocionalmente partilhado entre muitos. É à luz deste hedonismo e desta partilha de emoções que vimos milhões de iranianos a festejarem o Ano Novo persa, que se estendeu de 20 de março a 04 de abril de 2020, e para tal, a deslocarem-se de uma ponta do país para outra, com a finalidade de visitar os familiares e de passar uns dias de férias. É ainda sob o prisma do hedonismo e da partilha de emoções que vimos milhares de adeptos do PSG (Paris Saint-Germain Football Club) a festejarem na rua a vitória do seu clube sobre o Borussia Dortmund, em 11 de março de 2020, depois de um jogo realizado à porta fechada, com o objetivo de criar «uma atmosfera, um karma», segundo a palavra de um fã, relatada no jornal Ouest-France, em 13 de março de 2020. E é sob esse mesmo prisma que vimos uma multidão de jovens a festejarem o «Spring Break», nas praias da Flórida, com o lema: «vamos todos morrer, mais vale acabar em beleza» (Le Nouvel Obs, de 19 de março de 2020). É nesse mesmo sentido ainda que dezenas de parisienses dançaram na rua, no sábado 25 de abril de 2020, ao ritmo de uma canção da já desaparecida referência musical, Dalida, uma canção precisamente intitulada: «deixai-me dançar», com um desprezo e um desrespeito total por todas as medidas de coação.
Terceiro, o espírito de revolta: o distanciamento social impediu inúmeros grupos sociais de manifestarem publicamente o seu descontentamento, gerando nos indivíduos outras tantas frustrações. Estou a pensar nas ocupações selvagens das rotundas, aos sábados, pelos coletes amarelos em França, como forma de protesto social, e mesmo de revolta contra as instituições (o Estado, os bancos, os restaurantes de luxo, etc.) e todos aqueles que as incarnam, à semelhança dos políticos e de todos aqueles que são genericamente categorizados como ricos. Ora, os coletes amarelos que, durante um ano, melhor incarnavam o espírito de revolta, foram reduzidos ao silêncio, com as medidas de confinamento e de distanciamento social. A revolta remete para formas de relacionamento horizontais, que se opõem à verticalidade das relações hierárquicas que encontramos no Estado, nas empresas, na escola, etc. É «um protesto obscuro que nem envolve sistemas nem razões», como o dizia Albert Camus, no seu livro: O Homem revoltado. Essa forma de luta difusa prosseguiu nas redes sociais e voltará para a rua quando as circunstâncias o proporcionarem. Pois, o povo real, do qual Marx dizia, retomando uma expressão de Thomas Hobbes, que é «puer robustus sed malitiosus» (uma criança robusta, mas maliciosa), não faz mais do que reivindicar o que lhe é devido: o direito a uma palavra que lhe foi confiscada; o direito àquilo a que Max Weber chamava de «democracia de rua», direitos esses que prescindem de toda a forma de representação política. Foi este instinto de revolta que levou muitos jovens a organizar rodeos com motas, nas ruas e em parques de estacionamento, desafiando assim as autoridades policiais. Foi esse mesmo instinto que levou milhares de alemães a protestarem na rua contra as medidas ditatoriais do confinamento. E é de prever que o instinto da revolta se generalizará a todos os sectores da vida económica e social, a curto ou médio prazo: as fábricas, os transportes, os hospitais, os tribunais, etc.
Para concluir, direi que o instinto gregário sobrepor-se-á sempre ao egoísmo dos interesses e ao racionalismo dos peritos. Não é só o vírus que se transmite, a alegria de estarmos juntos também o faz. Curiosamente, a sociologia não esperou pela chegada desta última versão do coronavírus para fazer empréstimos semânticos aos epidemiólogos: Gustave Le Bon e Émile Durkheim referiam-se ao conceito de contágio (de cum-tangere, tocar com); Georg Lukacs ao de absorção; Jean Baudrillard ao de viralidade; Edgar Morin ao de possessão e Michel Maffesoli ao de contaminação. Numa altura em que prevalecem medidas de distanciamento social impostas, as palavras que Victor Hugo escreveu no Prefácio das suas Contemplações ecoam como uma mensagem de bom senso e mesmo de senso comum, um senso comum que sempre foi denegrido pelos intelectuais fechados na sua torre de marfim: «Ah! Insensato, que acredita que eu não sou você!».
Este trabalho é apoiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Financiamento Plurianual do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade 2020-2023 (que integra as parcelas de financiamento base, com a referência UIDB/00736/2020/, e financiamento programático, com a referência UIDP/00736/2020).
Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons – Atribuição-Não Comercial 4.0 Internacional.