BASTA COVID-19, BASTA!

11 Maio 2020

A contaminação do setor cultural pela COVID-19 está a revelar-se dramática um pouco por todo o mundo. Em Portugal, aos constrangimentos provocados pelo inesperado da situação, acrescem as debilidades estruturais que se têm traduzido de múltiplas e variadas formas ao longo dos anos (e.g. desarticulação intersectorial, desarticulação entre os diversos níveis da administração pública, excesso de protagonistas políticos, precarização, subfinanciamento). Resta, por isso, a esperança de que a pandemia seja uma oportunidade para operar uma mudança de paradigma, promovendo o diálogo consistente e consequente entre os diferentes protagonistas do setor cultural português.

Texto de Manuel Gama (investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade e co-coordenador do Observatório de Políticas de Comunicação e Cultura do CECS)
E-mail: manuelgama@ics.uminho.pt

Rodrigo Ruiz (Unsplash)

Os resultados preliminares do projeto de investigação “Impactos da COVID-19 no setor português”, que o POLObs está a desenvolver desde 16 de março de 2020, não são muito animadores sobre a situação que o setor está a experienciar e evidenciam que o vírus está a paralisar o setor cultural em Portugal.

Os quatro eixos de análise do estudo estão a permitir perceber que: 1) não obstante a considerável cobertura mediática das consequências da COVID-19 no setor cultural português, a cultura não constituiu uma prioridade editorial; 2) o fluxo de notícias nos websites dos municípios e das entidades intermunicipais está em linha com o pouco peso estratégico que a cultura tem em muitas das dinâmicas das políticas municipais; 3) a atividade parlamentar e as iniciativas do Governo para fazer face aos constrangimentos provocados pela COVID-19, sublinharam o pouco protagonismo da cultura na escala de prioridades dos atores políticos; e 4) as organizações e os profissionais do setor cultural identificaram danos irreparáveis e a necessidade de medidas urgentes, substantivas e estruturantes.

Um quinto eixo de análise, que não está incluído no working report #1 do projeto divulgado no final de abril mas que se pode revelar particularmente importante para compreender as dinâmicas provocadas pelos impactos da COVID-19 no setor cultural, está relacionado com os múltiplos manifestos, cartas, tomadas de posição e comunicados, que foram sendo produzidos por diferentes grupos, mais ou menos formalizados e representativos, do setor cultural. Façamos, então, uma brevíssima viagem por alguns destes documentos para, por um lado, não nos esquecermos dos múltiplos contributos para fazer face à crise provocada pela pandemia de 2020 e, por outro lado, para que Portugal possa ser vir a ser um exemplo positivo nas respostas desiguais que na Europa estão a ser dadas no apoio aos seus sectores culturais. Poderiam ser muitas as paragens nesta viagem panorâmica, mas fiquemo-nos por um leque restrito de 11 escalas em território nacional, que já nos bastam para sublinhar as múltiplas alternativas apresentadas para o setor cultural afirmar: Basta COVID-19, Basta!

O Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos (CENA-STE) foi uma das primeiras organizações representativas do setor cultural a alertar, no seu comunicado de 12 de março, para os problemas que se avizinhavam na sequência das medidas definidas a 10 de março pela Direção-Geral de Saúde para fazer face à COVID-19 e que iriam agudizar a precariedade e frágil proteção social que afeta os trabalhadores do sector. Depois de um conjunto de iniciativas que foi desenvolvendo de forma continuada, no final do mês de abril o CENA-SET tornou público um conjunto de 22 de medidas para serem implementadas a curto, a médio e a longo prazo durante os próximos dois anos para responder às necessidades específicas e concretas do setor. Das medidas elencadas pelo CENA-SET destacamos quatro: criação de um fundo de emergência social para resolver problemas imediatos dos profissionais desprotegidos devido à precaridade laboral; criação de um Cartão-Cultura, com um valor mensal para a aquisição de produtos culturais nacionais que, depois de utilizado pelos cidadãos, reverteria a favor das entidades culturais em que os cidadãos escolheram para aplicar a verba disponibilizada; obrigatoriedade de estabelecimento de contratos de trabalho no âmbito dos projetos com financiamentos públicos; mapeamento exaustivo do tecido cultural português com o objetivo de diagnosticar necessidades específicas (setoriais e territoriais).

Na segunda quinzena de março surgem mais contributos, nomeadamente o manifesto em defesa de um Presente com Futuro que sugere, por exemplo, a aquisição pública antecipada de prestações de serviço a agentes culturais privados e a criação de vários programas de encomendas (e.g. filmes e documentários, arquitetura, design de comunicação e de equipamento).

A primeira semana de abril foi prolixa na divulgação de manifestos, cartas, tomadas de posição e comunicados. Uma carta aberta que dá nota da criação da Rede de Livrarias Independentes, bem como de um conjunto de medidas de emergência como as compras institucionais e de medidas estruturais como a fiscalização da atividade comercial de venda a retalho de livros. Um manifesto de profissionais das artes (SOS ARTE PT), que, entre outros, considera relevante a criação de um fundo de emergência e o reajustamento do Plano Nacional das Artes. E uma carta aberta onde se relembra que, devido à intermitência e precaridade, há uma parte significativa de profissionais do setor cultural que pode estar a ser excluída dos apoios sociais anunciados, por serem uma espécie de “invisíveis da cultura”, o que pode levar a que, no presente, se observem problemas imediatos de subsistência e, no futuro, se comprometa o acesso à diversidade cultural da população portuguesa.

Ainda na primeira semana de abril, 1601 autores, artistas e profissionais do espetáculo remeteram, através da Sociedade Portuguesa de Autores, da Cooperativa Gestão dos Direitos dos Artistas e da Associação de Gestão de Direitos de Produtores Fonográficos, uma carta de apelo ao Governo e ao Parlamento para que fosse assegurado o futuro do setor cultural em Portugal. O leque de preocupações dos subscritores centra-se em quatro dimensões essenciais. Nas debilidades estruturais do setor, que se consubstanciam, nomeadamente, na disfuncionalidade do mercado de venda de música online. Nos problemas na manutenção da atividade profissional, independentemente de ser remunerada ou não, havendo alguns artistas a conseguirem desenvolver, ainda que parcialmente, as suas atividades, sendo que os técnicos estão, por razões relacionadas com as especificidades da sua ocupação, a serem impedidos de exercer por completo o seu trabalho. Nas fragilidades das respostas dadas pela tutela, como a criação de uma linha de emergência de apoio à produção, que se revela insuficiente e inadequada para resolver problemas imediatos do setor, e a legislação referente aos espetáculos não realizados, que não salvaguardou adequadamente os interesses concretos de autores e artistas. Acresce ainda a estas três preocupações, uma previsível crise de confiança que poderá concorrer para que, terminado o período de confinamento, o público tarde em regressar de forma efetiva a eventos culturais ao vivo. Por tudo isto, os subscritores da carta de apelo solicitaram a criação de um verdadeiro fundo de emergência e apoio ao sector da cultura e um conjunto de alterações e aditamentos ao Decreto-Lei 10-I /2020, de 26 de março, mas volvido um mês ainda não conseguirem uma resposta positiva às propostas apresentadas que, aparentemente, não implicariam investimentos financeiros adicionais e permitiriam uma repartição equitativa dos impactos económicos que a COVID-19 está a provocar no setor cultural português.

A Associação Profissional de Conservadores-restauradores de Portugal também divulgou as suas preocupações, alertando para a importância de acomodar nas medidas para mitigar os efeitos da COVID-19 as especificidades das diferentes atividades e profissões que o compõem o setor cultural nas medidas a tomar, sugerindo que a salvaguarda de postos de trabalhos poderia ser favorecida, por exemplo, através da renovação automática e gratuita dos alvarás de conservadores-restauradores e empresas.

Foi através de uma carta ao Ministério da Cultura, datada do final de abril, que a Associação Portuguesa de Museologia (APOM) sublinha a importância da existência de um regulamento para orientar a reabertura de espaços como museus, palácios, monumentos, sítios arqueológicos. Os autores da missiva manifestam a sua preocupação sobre os efeitos da pandemia no desemprego no setor cultural, com especial incidência de trabalhadores independentes, destacando ainda a necessidade de reforço financeiro das instituições devido, nomeadamente, ao desenvolvimento de projetos não previstos relacionados com a disponibilização de recursos virtuais durante o encerramento dos espaços.

Abril não terminou sem que um conjunto de 14 estruturas e grupos, formais e informais, que representam trabalhadores da Cultura e das Artes tenham divulgado a carta Unidos pelo Presente e Futuro da Cultura em Portugal manifestando a sua disponibilidade para dialogar e apelando para a criação de uma estratégia a curto, médio e longo prazo que integre a consagração legislativa da especificidade de intermitência dos trabalhadores do setor cultural e o mapeamento cultural que permita a construção de uma verdadeira política cultural.

A Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas (BAD), na sua tomada de posição pública de início de maio, realça, por um lado, a capacidade demonstrada pelos arquivos e bibliotecas na adaptação da prestação dos serviços à comunidade em tempos de pandemia, e, por outro lado, a necessidade de, no processo de desconfinamento depois de levantado o estado de emergência em Portugal, não se olvidarem as orientações da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas. Mais do que solicitar recursos, a BAD alerta para a necessidade de garantir procedimentos de trabalho adequados para que todos possam prestar e usufruir de serviços de elevada qualidade nestes domínios da cultura.

Como se pode observar pelos manifestos, cartas, tomadas de posição e comunicados que sumariamente convocamos, as preocupações para a mitigação dos múltiplos e variados impactos negativos da COVID-19 foram transversais aos vários domínios do setor cultural e, em alguns casos, não se resumiram a problemas provocados unicamente pela pandemia. Esperemos, por isso, que no próximo working report do estudo “Impactos da COVID-19 no setor português” seja possível identificar outro tipo de impactos da COVID-19 no setor cultural português, nomeadamente impactos positivos de medidas que estão ou virão a ser tomadas por parte do Governo, das autarquias locais e de organizações da sociedade civil. Medidas e iniciativas que só terão a ganhar, por um lado, se forem fruto de um diálogo efetivo entre os diferentes protagonistas do setor cultural e, por outro lado, se entrarem em linha de conta com as múltiplas experiências internacionais onde a cultura não é remetida para um papel secundário em tempos de pandemia.

 


Este trabalho é apoiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Financiamento Plurianual do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade 2020-2023 (que integra as parcelas de financiamento base, com a referência UIDB/00736/2020/, e financiamento programático, com a referência UIDP/00736/2020).

Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons – Atribuição-Não Comercial 4.0 Internacional.

  • Nuno Pinto de Sousa

    Depois do intervalo…
    Art marketing ou marketing na arte?
    A sociedade enfrentou o seu maior desafio, devido a um problema de saúde pública sem precedentes e à escala global. Agora começamos a ver a possibilidade de calma e progressivamente podemos voltar ao ritmo das nossas vidas, apesar de nos irmos defrontar com um mundo diferente…os agentes culturais podem retirar deste período várias lições.
    O setor da cultura foi o primeiro a sair de cena e provavelmente será o último a regressar aos seus ‘palcos’. Mas foi igualmente a par da área da saúde, o primeiro a corresponder com a sua capacidade criativa. Apesar de nem sempre receber os apoios e investimentos suficientes para o desenvolvimento da sua atividade, ou por outro lado, não ter a merecida audiência, aplausos e reconhecimento. Mas teve de forma espontânea ou organizada, de iniciativa individual ou coletiva, a habilidade de apenas com uma camara ou até um simples smartphone, ou recuperar os seus arquivos e registos vídeo para partilhar os seus conteúdos em plataformas digitais. Desde músicos, a companhias de teatro ou dança, escritores, ou empresas de audiovisuais, todos emitiram horas e horas de entretinimento para todas as idades e estilos, preencheram as horas mais difíceis das nossas vidas, enquanto vivíamos tempos de incerteza e angústia, foram os artistas e toda a comunidade da indústria cultural que nos proporcionou alguns momentos de alegria e esperança.
    Quando começamos a ter noção e conhecimento dos números de público que aderiram a estas iniciativas nas plataformas digitais, apesar de forma gratuita, mas que ultrapassaram em larga escala a capacidade das suas salas, no novo ciclo, todo este awareness e experiência não devem ser desperdiçados. Acredito que devem é ser reforçados e potenciados a dois níveis distintos: a incorporação deste tipo de “códigos” nas suas estéticas e conteúdos; e em estratégias de comunicação e marketing igualmente de forma criativa.
    Esta oportunidade, claro que se depara num primeiro momento com um vasto conjunto de recursos, que têm de ser devidamente planeados e conjugados, porque à semelhança de outros meios também este ambiente tem a sua linguagem própria: as equipas com os skills específicos, a aquisição de ferramentas e software, uma parte do orçamento de comunicação, especificamente para o digital; e finalmente, o tempo, devido à ‘barreira’ das partilhas, algoritmos e rankings. Sem terem a necessidade de recorrer a todos elementos da designada digital culture, nomeadamente os processos técnicos, as formas de expressão e narrativas ou as experiências imersivas, podem facilmente -e sublinho- com criatividade, amplificar a sua comunicação com ideias das mais simples às mais complexas: uma companhia de teatro ou dança, um vídeo no You Tube com uma entrevista com o autor, encenador, ou até algum protagonista; uma orquestra com partilha de alguns ensaios, um artista plástico a mostrar o seu estúdio; um escrito ler umas páginas do seu novo livro num Podcast, entre muitas outras formas…embora alguns deste passos já tenham sido dados, agora precisam de ganhar uma nova dinâmica e consistência.
    Porque as vantagens de aplicar os new media são significativas e de diversa ordem. Além de terem a possibilidade de divulgação juntos do público antes das suas performances, podem criar uma maior expectativa ou até uma descrição mais pormenorizada; criar espaços de diálogo direto entre as suas comunidades e os artistas, sem necessidade de intermediação; ter o feedback imediato e reação do seu público; criar também uma sensação de pertença e igualmente de benefícios ao publico mais fiel e frequente; e acima de tudo, uma vantagem primordial ao aplicar os new media, um maior engagement e impacto na sociedade.
    Esta pode ser no fundo a questão mais sensível. Mas se todos consideramos a cultura como um pilar fundamental, quer para a construção dos nosso valores e personalidade como indivíduos, ou como forma de construirmos a nossa memória e identidade no plano coletivo, se ao agentes culturais desejam ter uma participação ativa na disseminação das suas ideias e lançar a discussão para os temas mais abrangentes e delicados da sociedade contemporânea, se a comunicação e o marketing tem evoluído ao longo das últimas décadas, então estão reunidas todas as condições para que ao agentes culturais tenham todos os aplausos…Contudo, é preciso também olhar para este “intervalo” com outra perspetiva que o Covid-19 nos obrigou infelizmente, a suspender por momentos as nossas vidas, ao distanciamento social, mas também a parar e refletir e olhar para o futuro que se advinha repleto de novos desafios. Nesta área de atividade, que a comunicação e o marketing não deixem de ser um cargo meramente funcional ou secundário, mas que se admita possa estar à disposição, com todas os novos meios digitais para a captação e fidelização de novos públicos e audiências para todos os agentes culturais, ou para ser ainda mais objetivo e concluir, se o marketing é uma arte, porque não estar igualmente ao serviço da arte?
    Nuno Pinto de Sousa
    Mestrado Ciências da Comunicação (Internet e New Media)
    Universidade Católica Portuguesa