Clima, cidadania e trajectórias para futuros pouco comuns
06 Dezembro 2018
Termina em breve o ano de 2018. Foi há precisamente três décadas que a questão das alterações climáticas adquiriu, pela primeira vez, alguma projecção política e, com isso, começou a ganhar amplitude mediática.
Texto de Anabela Carvalho (investigadora do CECS)

Imagem de Nareeta Martin (uso livre)
De lá para cá surgiu uma multitude de construções institucionais, com destaque para o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (normalmente referido pela sigla IPCC, do inglês) e a Convenção-Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas (UNFCCC), no âmbito da qual se realizam as Conferências das Partes (COPs) anualmente (está em curso a COP-24 em Katowice, Polónia). A UNFCCC integra também o Órgão Subsidiário de Consulta Científica e Tecnológica (SBSTA), o Órgão Subsidiário de Implementação (SBI), Grupos Ad Hoc e Grupos de Peritos, para além do Secretariado (sediado em Bona, cerca de 500 pessoas). O complexo desenho institucional inclui ainda ‘criações’ com siglas como CMP, CDM, NAMAs, NAPAs, (I)NDCs, etc, etc, etc.
Há precisamente três anos atrás, negociava-se o Acordo de Paris (finalizado a 12 de Dezembro de 2015), uma espécie de substituto do Protocolo de Quioto (um tratado complementar à UNFCCC), cujo primeiro período de compromisso terminara em 2012. Enquanto que o Protocolo de Quioto determinava, para os países ‘industrializados’, uma redução média nas emissões de gases com efeito de estufa de cerca de 5% (face ao ano de 1990), o Acordo de Paris não compromete os seus subscritores com metas específicas de redução, antes prevê que cada país (e que são agora tanto os ‘desenvolvidos’ como ‘em desenvolvimento’) proponha a sua própria contribuição nacional para o objectivo global de redução de emissões. É, portanto, um instrumento baseado no voluntarismo dos Estados.
As perguntas que se impõem são as seguintes: O que resultou de trinta anos de debate e negociação política? Com tantas instituições, com tantos mecanismos oficiais e com o aclamado Acordo de Paris, como estamos? Que futuros podemos imaginar?
Diagnosticar e projectar
Cientificamente, a gravidade das alterações climáticas tem-se tornado cada vez mais explícita. Milhares de artigos científicos, cinco Relatórios de Avaliação do IPCC e inúmeros programas de investigação evidenciam claramente a enorme intensificação antropogénica do efeito de estufa natural da atmosfera sobre o planeta Terra. A concentração de dióxido de carbono passou de cerca de 280 (antes do século XX) para mais de 400 PPM (Partes Por Milhão) (WMO, 2018), o valor mais elevado desde há mais de três milhões de anos. A concentração de outros gases com efeito de estufa, como o metano e o óxido nitroso, aumentou também muito. Esses estudos mostram também a relação entre essa intensificação do efeito de estufa e o aumento da temperatura média global; alterações diversas nos padrões climáticos em todo o planeta; o aumento da frequência e da intensidade de fenómenos meteorológicos extremos (ondas de calor, secas prolongadas, pluviosidade concentrada, etc).
Note-se que a temperatura média global aumentou já cerca de 1 o C relativamente ao período pré-industrial e que o ‘grande objectivo’ do Acordo de Paris é manter a subida da temperatura média global abaixo de 2 o C, bem como “prosseguir esforços no sentido de limitar esse aumento a 1.5 o C”. No entanto, note-se também que, apesar de se realizarem anualmente Conferências das Partes da UNFCCC desde 1995 e de um trabalho político-institucional em permanência em torno desta temática, os compromissos até agora assumidos pelos Estados levariam (a serem cumpridos, o que não é de todo garantido) a um aumento médio global da temperatura de mais do que 3o C, o que sugere que será muito difícil alcançar as metas do Acordo.
Os cenários elaborados pelo IPCC, no seu último Relatório de Avaliação (2014), situam o aumento médio da temperatura global entre 0.3 e 4.8 o C até ao final do presente século (relativamente à média do período 1986-2005, que já teve um aumento relativamente à época pré-industrial). Esta incerteza relaciona-se com os diferentes cenários de emissões de gases com efeito de estufa – da forte redução ao ‘business-as-usual’ – cuja evolução, como é óbvio, não é possível prever pois depende de trajectórias económicas, tecnológicas, culturais, etc.
Do que há certeza é que, com qualquer cenário, a temperatura média do planeta continuará a subir nas próximas décadas. Sabe-se também que os impactos das alterações climáticas não são lineares, que pode haver alterações bruscas no espaço de poucos anos (o passado geológico demonstra-o, nesses casos devido a fenómenos naturais como erupções vulcânicas de larga escala) e que haverá, em toda a probabilidade, ‘feedbacks positivos’, ou seja algumas consequências das alterações climáticas, como o degelo das calotes polares e de áreas de tundra, gerarão, elas próprias, novas consequências gravosas, como, respectivamente, a diminuição do efeito de albedo das regiões polares e a libertação de grandes quantidades de gás metano (um potente gás com efeito de estufa) para a atmosfera. Os perigos são, portanto, épicos. Evitar a sua concretização requer transformações cruciais a nível societal (Driessen et al, 2013). Para tal, não basta que o problema seja conhecido (as sondagens indicam que a maior parte das pessoas está ciente e preocupada com as alterações climáticas). É tão ou mais importante que as opções de acção sejam debatidas. A investigação sobre discursos jornalísticos mostra, contudo, que os media dominantes tendem a reproduzir visões tecnocratas das alterações climáticas (Carvalho, 2011).
Como pensar alternativamente?
Imaginar futuros sustentáveis
O título do muito conhecido Relatório Bruntland, de 1987, O Nosso Futuro Comum, evoca a ideia do planeta como arca de Noé onde se partilham as sortes. Em 2018, o que temos no horizonte são vários futuros possíveis. São todos diferentes daquilo que nos é conhecido e, nesse sentido, poder-se-iam dizer ‘pouco comuns’. À medida que se vai avançando na escala das emissões globais de gases com efeito de estufa, os futuros que estão no horizonte correspondem a condições de vida muito difíceis para os seres humanos e mesmo impossíveis para muitas outras espécies.
Os futuros que enfrentamos são também ‘pouco comuns’ no sentido em que serão distintos para diferentes pessoas e países. De facto, num mundo em que várias formas de desigualdade têm vindo a aumentar, as alterações climáticas antropogénicas (re)produzem injustiças de vários tipos, nomeadamente intergeracionais, internacionais e sócio-económicas, entre outras. Primeiro, serão sobretudo as gerações futuras, que – ainda, pelo menos – não fizeram nada para causar o problema, as suas principais vítimas, pois as emissões de gases com efeito de estufa já realizadas continuarão a ter impactos climáticos muito significativos dado o ciclo de vida desses gases e a complexidade dos processos atmosféricos. Segundo, os países mais pobres têm, pelo menos per capita, um muito menor contributo para as emissões de gases com efeito de estufa mas são os mais vulneráveis. Terceiro, as classes sociais mais desfavorecidas têm tipicamente uma ‘pegada carbónica’ menor mas maior vulnerabilidade aos impactos das alterações climáticas, por exemplo porque têm menor capacidade de prevenir e de responder aos efeitos das tempestades nas suas casas.
Neste quadro, que sentido faz falar de ‘sustentabilidade’? ‘Sustentabilidade’ do quê? Para quem? E de que formas se lá chega?
As alterações climáticas prendem-se com uma enorme diversidade de domínios, da produção energética à mobilidade, da alimentação às actividades industriais, do consumo de bens materiais à gestão térmica dos edifícios, entre outras. Construir novos caminhos para mitigar as alterações climáticas implica transformações fundamentais a vários níveis, implicando uma grande variedade de agentes. Alguns desses caminhos podem também levar-nos a sociedades mais justas. Muitos outros não. Por exemplo, no campo da energia, podemos seguir por uma via em que simplesmente se substitui tecnologias (por ex. centrais termoeléctricas por centrais solares) mas em que as relações de poder não são alteradas (por exemplo, continuando o campo da energia dominado por grandes empresas). Ou, em alternativa, podemos seguir outras vias em que há também descentralização da produção energética e diversificação da propriedade (com uma grande multiplicidade de produtores), diferentes modelos económicos (por exemplo, num regime cooperativo), diferentes lógicas de trabalho, etc.
Estas são opções colectivas cruciais. Como tal, importa que tenham visibilidade nos espaços públicos, que sejam debatidas, e que os processos de decisão sejam radicalmente democratizados. O envolvimento dos cidadãos com todas estas (grandes) questões é, portanto, de enorme importância. No entanto, e apesar de haver uma retórica oficial de promoção da participação pública, a investigação (como a que tem sido desenvolvida no CECS) mostra como as possibilidades de participação são, muitas vezes, meramente nominais (e.g. Carvalho, Pinto-Coelho & Seixas, 2016). Para além disso, bloqueios de natureza simbólica, identitária, material ou outra constrangem, também, esse envolvimento.
Como contornar esses bloqueios? Como democratizar as sociedades ao repensar as estruturas e as práticas que produzem as alterações climáticas – e que estão no cerne dessas mesmas sociedades? São estes os maiores objectivos. Como reconhece o próprio IPCC, já sabemos mais do que o suficiente em termos biofísicos sobre as alterações climáticas. O que está em causa são questões sociais e, portanto, o que está em análise são também os contributos que os conhecimentos e competências próprios das ciências sociais e humanas podem dar para definirmos boas trajectórias para futuros satisfatórios.
Referências bibliográficas
Carvalho, A. (Ed.) (2011). As alterações climáticas, os media e os cidadãos. Coimbra: Grácio editor.
Carvalho, A., Pinto-Coelho, Z. & Seixas, E. (2016). Listening to citizens – enacting power: Citizen access, standing and influence in public consultation discourses. Journal of Environmental Policy and Planning. DOI: 10.1080/1523908X.2016.1149772
Driessen, J. et al. (2013). Societal transformations in the face of climate change: Research priorities for the next decade. Joint Programming Initiative ‘Connecting Climate Knowledge for Europe’. Retirado de http://jpi-climate.eu/media/default.aspx/emma/org/10829915/Paper+Societal+transformations+in+the+face+of+climate+change+-+April+2013+JPI+Climate.pdf
WMO, World Meteorological Organization (2018). The state of greenhouse gases in the atmosphere based on global observations through 2017. WMO Greenhouse Bulletin, 14. Retirado de https://library.wmo.int/index.php?lvl=notice_display&id=20697#.XAcXZieyufc
