E no cinema de fantasia? Como têm vindo a ser representadas as mulheres?

06 Maio 2025

A discussão sobre as representações femininas no cinema já vem do início do século XX e muita evolução se tem visto neste tipo de representações. No cinema de fantasia ocidental, a representação das mulheres também tem evoluído bastante, mas carrega ainda muitas marcas de uma tradição patriarcal, tradição essa que se mostra mais latente nas produções cinematográficas, do que nas televisivas. Este género cinematográfico, marcado por mundos secundários elaboradamente criados, magias, heróis e jornadas épicas, ainda reflete e reforça em grande escala os valores dominantes das épocas que retratam, inclusive no modo como constroem as personagens femininas que povoam estes universos de ficção.

Texto de Catarina Bessa Rodrigues (Investigadora CECS)

Imagem de Karen Zhao na Unsplash

Muitas das suas personagens femininas ainda enfrentam limitações narrativas, como falta de agência e participação em papéis secundários (Wickham, 2018), apesar de algumas personagens subverterem estereótipos e apresentarem jornadas mais complexas e emancipadoras. Avanços que, apesar de encorajadores, mantêm ainda a maioria das representações femininas presas a conceções conservadoras ou simplistas de género. ​O género cinematográfico de fantasia é um género com um enorme potencial para desafiar as estruturas patriarcais e propor novas possibilidades de representações femininas, mas ainda há desafios significativos a ser atendidos. ​

As representações femininas no cinema de fantasia evoluíram ao longo do tempo, passando por diferentes fases. Inicialmente, predominava a passividade e os papéis secundários, em que as mulheres eram retratadas como figuras passivas, dependentes de heróis masculinos, ou como vilãs estereotipadas, como bruxas e sedutoras. ​As representações desenvolveram-se então e com o avanço do feminismo, surgiram personagens femininas mais independentes e ativas, que começaram a desafiar papéis tradicionais, como o de “princesa passiva” ou “mãe cuidadora”, subvertendo os estereótipos tradicionais que se impunham. Mais recentemente, houve um esforço para aumentar a complexidade e subjetividade das representações femininas, ao criar personagens femininas mais complexas e multifacetadas, com jornadas próprias, conflitos internos e motivações profundas, com exemplos incluem heroínas como Lyra Belacqua de e Yennefer. Seguiu-se a defesa da adoção do female gaze, que tem permitido explorar a interioridade das personagens femininas e as suas experiências, oferecendo uma perspetiva mais rica e inclusiva. ​Além disso, começou também a defender-se a inclusão da interseccionalidade, derivada da consciência de que não existe apenas “um tipo de mulher”, mas vários, com algumas representações que começaram a abordar questões de raça e género de uma forma mais inclusiva. No entanto, e apesar dos avanços e da sua persistência, muitas representações ainda estão presas a conceções conservadoras de género, com personagens femininas frequentemente a ocupar papéis secundários e limitadas por narrativas que reforçam estereótipos tradicionais. ​

Destaca-se, por isso, a contínua importância de criar narrativas centradas na subjetividade e motivações das personagens femininas, utilizando uma aproximação ao female gaze para explorar suas experiências. ​O conceito de female gaze refere-se a uma perspetiva narrativa e visual que prioriza a experiência, subjetividade e agência das mulheres, em contraste com o male gaze (Mulvey, 1975), que tradicionalmente objetifica as mulheres e as retrata como objetos de desejo masculino. ​ O female gaze existe numa procura de representar as mulheres de forma mais complexa e autêntica, explorando as suas emoções, pensamentos e conflitos internos. ​

Várias são as autoras que têm teorizado sobre o female gaze, como Brey (2022) Soloway  (2016) ou Ince (2017). As principais características deste olhar feminino são o foco na subjetividade feminina, que mostra o mundo através dos olhos das personagens femininas, revelando as suas vivências e interioridade. ​A humanização das mulheres, que exige que se retrate as mulheres como indivíduos completos, com desejos, falhas e motivações próprias, evitando estereótipos. ​A empatia e conexão emocional, que convida o público a conectar-se emocionalmente com as personagens femininas, promove uma compreensão mais profunda das suas vivências. A consciência do olhar destaca a consciência das personagens e como isso afeta suas ações. ​A inclusão de diversidade, amplia as representações femininas para incluir diferentes identidades de género, sexualidade e raça, e ajuda a desconstruir os estereótipos tradicionais, desafiando as representações tradicionais que reforçam os papéis de género limitadores. ​

O female gaze é uma ferramenta política e artística que procura justiça social na arte, promovendo representações femininas mais igualitárias, inclusivas e emancipadoras. ​ Tem sido utilizado para transformar narrativas e representações no cinema e em séries televisivas, também em géneros como a fantasia, onde há espaço para explorar novas possibilidades de identidade e agência feminina. ​

Para o efeito de definição de um female gaze a análise fílmica é essencial para compreender as narrativas e representações de género no cinema de fantasia, pois ajuda a identificar de forma detalhada como as personagens femininas são construídas e a sua agência nas histórias a que pertencem. A análise fílmica permite explorar a narrativa e a visualidade das representações, investiga se as personagens femininas são subordinadas a narrativas masculinas e avalia a construção de personagens femininas e as suas histórias pessoais, assim com as histórias de origem.

As conclusões sobre os filmes analisados destacam que, embora algumas produções estejam a avançar na construção de personagens femininas mais complexas e emancipadas, muitas ainda reproduzem estereótipos e limitações tradicionais. ​

  1. Barbie (2023): A protagonista subverte estereótipos ao embarcar numa jornada de autodescoberta, explorando sua interioridade e transformando-se de objeto de imaginação para sujeito de seus próprios desejos. ​
  2. Beauty and the Beast (2017): Belle é apresentada como uma princesa independente e curiosa, mas sua narrativa ainda a coloca em um papel secundário, abdicando de seus próprios sonhos em função do amor. ​
  3. Aladdin (2019): Jasmine demonstra agência ao expressar seu desejo de se tornar sultã e cuidar do seu povo, mas a sua jornada não é completamente explorada, sendo influenciada por interesses românticos. ​
  4. The Little Mermaid (2023): Ariel desafia a autoridade patriarcal e busca liberdade e pertença, mas abdica da sua voz, refletindo vulnerabilidade e coragem na sua jornada.
  5. Mary Poppins Returns (2018): Mary Poppins é representada como uma cuidadora ideal, sem nunca se libertar desse mesmo papel e limitando a sua influência ao mundo infantil. ​
  6. Dumbo (2019): Colette evolui de uma figura sofisticada e superficial para uma figura maternal e cuidadora, mas a sua jornada é secundária na narrativa. ​
  7. Maleficent: Mistress of Evil (2019): Maleficent subverte o estereótipo da bruxa malvada ao cuidar de Aurora e ao desafiar estruturas patriarcais, destacando a sua complexidade e interioridade.
  8. Miss Peregrine’s Home for Peculiar Children (2016): A Senhora Peregrine é limitada ao papel de cuidadora, sem uma história de origem ou motivações próprias, carecendo de profundidade e agência, além do seu papel perante as crianças peculiares.

Estes filmes mostram que as personagens femininas no cinema de fantasia estão gradualmente a ganhar mais profundidade e complexidade, mas ainda enfrentam desafios relacionados com a sua representação e agência, o que sugere que o cinema de fantasia deve focar-se mais na interioridade e protagonismo das personagens femininas, promovendo representações mais justas e completas.

Já as séries televisivas destacam avanços significativos na representação de personagens femininas, especialmente no género de fantasia e aventura. ​ As séries oferecem maior espaço para desenvolver personagens femininas complexas, explorando as suas histórias de origem, motivações e conflitos internos. ​ No entanto, ainda há desafios relacionados à dependência de narrativas masculinas, estereótipos tradicionais e à profundidade emocional de algumas personagens. ​

  1. One Piece (2023): Nami é uma personagem multifacetada, com uma história de origem que explora sua vulnerabilidade e força, destacando a sua autonomia e complexidade emocional. ​
  2. The Wheel of Time (2021): As personagens femininas, como Moiraine e Nynaeve, são representadas como líderes e protetoras, desafiando estruturas patriarcais, embora algumas narrativas ainda as coloquem em posições de dependência.
  3. The Witcher (2019): Yennefer e Ciri são personagens fortes e complexas, com jornadas que exploram poder, sacrifício e autodescoberta, explorando questões que têm a ver com a sua feminilidade como a relação mãe e filha.
  4. House of the Dragon (2022): Rhaenyra e Rhaenys enfrentam desafios numa sociedade patriarcal, com trajetórias que refletem conflitos familiares e políticos, além de ambições por poder e emancipação, sempre limitadas pela realidade circundante.
  5. Wednesday (2022): Wednesday Addams é uma protagonista independente e inteligente, com uma narrativa que explora a sua individualidade, autodescoberta e capacidade de resolver mistérios, enquanto a sua relação com os outros personagens adiciona camadas à sua personalidade. ​
  6. The Rings of Power (2022): Galadriel é uma líder determinada e resiliente, mas a sua jornada é frequentemente moldada por conflitos externos, deixando a sua interioridade menos explorada por se focar demasiado na sua faceta de guerreira. Bronwyn evolui de cuidadora para líder, destacando sua força e agência. ​
  7. Warrior Nun (2020): Ava é uma protagonista que combina vulnerabilidade e força, com uma narrativa que explora temas de fé, sacrifício e autodescoberta, mas que carece de uma história de origem e motivações pessoais para as suas ações.
  8. Shadow and Bone (2021): Alina Starkov enfrenta desafios relacionados com o poder e identidade, mas a sua narrativa é frequentemente influenciada por interesses românticos e conflitos externos, limitando sua autonomia e desenvolvimento.

Conclui-se que, embora haja avanços na representação de personagens femininas, ainda é necessário superar as limitações relacionadas à dependência de narrativas masculinas e à exploração mais profunda da interioridade das personagens femininas. ​

Bibliografia

  1. Brey, I. (2022). (Conférence) Iris Brey: le regard féminin, un regard visionnaire [Video]. Youtube.https://www.youtube.com/watch?v=qoGDenf2FoA
  2. Ince, K. (2017) The body and the screen. Bloomsbury Publishing.
  3. Mulvey, L. (1999). Visual Pleasure and Narrative Cinema. In Thornham, S. (Eds.) Feminist Film Theory (1ª ed., pp. 58-69). Edinburgh University Press.
  4. Soloway, J. (2016). Jill Soloway on the female gaze | MASTER CLASS | TIFF 2016 [Video]. Youtube.
  5. Wickham, K. (2018). Questing feminism: Narrative tension and magical women in modern fantasy. [Tese de Doutoramento não publicada]. Kingston, University of Rhode Island, Estados Unidos da América.
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