Educação para o cinema de crianças e jovens: a contribuição dos cineclubes
25 Março 2025
Cada vez mais compreender, atuar e (inter)agir com e na cultura contemporânea, permeada por dispositivos audiovisuais, exige a aprendizagem de diferentes estratégias e ferramentas de educação midiática, indo além do simples consumo desses conteúdos. A educação para o cinema permite, especialmente às crianças e jovens, compreender o funcionamento da linguagem cinematográfica e audiovisual, possibilitando novas experiências de participação e exercício da cidadania com e através desses meios. A seguir, vamos refletir sobre as contribuições dos cineclubes na promoção de projetos e práticas de educação para o cinema em Portugal e no Brasil.
Texto de Milene Figueiredo

Ação de educação para o cinema promovida pelo Cineclube de Viseu, em Portugal (Fotografia de Milene Figueiredo)
Todos os dias nos deparamos com um grande fluxo de informações, notícias e conteúdos de entretenimento exibidos através de vídeos, filmes, séries, produzidos através de imagens e sons. Além disso, as possibilidades de criação e divulgação dos nossos próprios conteúdos, através da disseminação nas redes sociais, nos fazem questionar se essas novas possibilidades de participação e interação ampliam nossos direitos de exercício da cidadania, ou apenas criam uma falsa ideia de que temos voz e vez no ambiente digital.
Todas essas mudanças, que alteram as formas de acesso e interação entre os sujeitos e o mundo, também se .fazem presentes nos modelos de produção, distribuição e recepção cinematográfica e audiovisual, bem como do nosso lugar enquanto públicos e cidadãos contemporâneos.
Na tentativa de construção de uma relação pautada na apreciação, análise e participação crítica e criativa nesse novo campo comunicativo, se faz urgente a apropriação de diferentes estratégias de educação para as mídias, em geral, e de educação para o cinema, em particular, nos permitindo alterar o regime de visualidade atual.
A pesquisa “Cineclubes e a educação para o cinema de crianças e jovens: itinerários portugueses e brasileiros” (Figueiredo, 2024) buscou conhecer as práticas de educação para o cinema de cineclubes, em Portugal e no Brasil, com foco em crianças e jovens. Através dessa pesquisa, foi possível identificar quais as estratégias de educação para o cinema adotadas por dois cineclubes portugueses (Cineclube de Viseu/Viseu e AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual/Viana do Castelo) e dois cineclubes brasileiros (Cineclubinho Ó Lhó Lhó e Cineclube da Mostra, ambos da cidade de Florianópolis).
Além disso, a pesquisa buscou ouvir crianças e jovens participantes das atividades e projetos propostos pelos cineclubes investigados, constatando algumas mudanças no perfil desses públicos. Foi possível identificar que os jovens portugueses, por exemplo, cada vez menos frequentam as salas de cinema, em virtude das diferentes possibilidades de acesso aos conteúdos audiovisuais em suas próprias casas através da disseminação de canais de streaming e TV BOX. Ou seja, para esses jovens, as experiências cinematográficas são predominantemente individuais. Já para as crianças ouvidas, as salas de cinema ainda são frequentadas, tornando-se uma experiência coletiva e socializadora entre seus pares e familiares. Mas também ouvimos o relato de crianças brasileiras que não costumam frequentar as salas de cinema da cidade, visto que a maioria delas se encontram dentro dos centros comerciais e, consequentemente, são inacessíveis em virtude da localização geográfica e dos altos custos dessa atividade. É o caso das crianças moradoras da comunidade do Maciço do Morro, no município de Florianópolis/Brasil. Nesses casos, os cineclubes surgem como uma alternativa de acesso dessas crianças ao cinema e a diferentes cinematografias, como é o caso do Cineclube da Mostra, de Florianópolis, que, em parceria com uma sala de cinema do Centro Integrado de Cultura da cidade, promove sessões de cinema gratuitas, semanalmente, voltadas ao público infantojuvenil.
Ao conhecermos as práticas de recepção audiovisual e cinematográfica do público infantojuvenil participante da pesquisa, foi possível analisar se as práticas adotadas pelos quatro cineclubes investigados dialogam com as atuais necessidades formativas das crianças e jovens contemporâneas, além de promoverem os ideais cineclubistas construídos ao longo da história dessas instituições.
Cineclubes: aspectos históricos, políticos e culturais
Os cineclubes, instituições culturais com origem nas primeiras organizações de público em torno do cinema, a exemplo do “Cinema do Povo, conforme a pesquisa de Macedo (2020), carregam um cariz político, cultural, educativo e contra-hegemônico diante do predomínio da cultura estadunidense de cinema. Esses espaços, de suma importância na história de Portugal e Brasil (a exemplo da atuação que tiveram durante os regimes ditatoriais nos dois países), caminharam na criação de uma cultura cinematográfica específica e diferenciada de constituição de públicos de cinema (cinefilia) ao longo das décadas. Entretanto, diante das atuais demandas e transformações operadas nos modelos de produção, distribuição e recepção cinematográfica, bem como nos públicos de cinema e audiovisual, buscamos, através dessa investigação, conhecer como essas instituições tem construído novas formas de atuação formativa, participativa, crítica e democrática com e para os novos públicos, ampliando a sua atuação para além de espaços promotores de filmografias de acesso restrito e de viés artístico.
Entretanto, a história do movimento cineclubista se depara, ao longo das últimas décadas, principalmente no Brasil, com o descaso das políticas públicas e governos, à mercê de anos de falência ou de avanços mínimos, visto que o investimento na cultura não se enraíza como prioridade no país. A Cinemateca Brasileira, por exemplo, responsável pela manutenção do acervo audiovisual do país, teve seu funcionamento encerrado em agosto de 2020. Em 2021, um grande incêndio atingiu um dos prédios (por falta de manutenção) onde se mantinham arquivados roteiros, arquivos em papel, cópias de filmes e grande parte da história do cinema brasileiro. Assim, observamos em Portugal um movimento cineclubista mais duradouro, com instituições em atuação há mais de 60 anos, como é o caso do Cineclube de Viseu, ou a AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual, em Viana do Castelo, fundada em 1994.
De acordo com o mapeamento realizado, constatamos, por exemplo, a presença de 194 cineclubes no território brasileiro, e 48 cineclubes em Portugal. No Brasil, grande parte das instituições cineclubistas é mantida via recursos obtidos através de projetos de lei para incentivo à cultura. Entretanto, em virtude da limitação temporal desses recursos, os cineclubes acabam encerrando suas atividades quando não conseguem mais obter novas fontes de custeio. Também observamos o surgimento de instituições visando atender a questões específicas, ou seja, cineclubes voltados às temáticas raciais, dos direitos humanos, infantis, astronômicas, ambientais, liderados por diferentes pessoas: professores, jovens, estudantes, cinéfilos e agentes comunitários.
Em Portugal, observamos que os Os cineclubes permanecem coesos em suas ações voltadas basicamente a exibição de filmes que não circulam nas salas comerciais. Também se observou que, em Portugal, a maior parte dos cineclubes são dirigidos por cinéfilos e agentes culturais, muitos deles com estruturas estabelecidas em caráter semiprofissional, como o Cineclube de Viseu, por exemplo.
Cineclubes, crianças e jovens: algumas possibilidades
As quatro instituições investigadas foram escolhidas em virtude do impacto do trabalho que desenvolvem junto das crianças e jovens. A AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual, possui, desde 2001, o projeto de literacia cinematográfica “Escolas em Grande Plano”, que, a partir de uma série de atividades, busca, em parceria com as escolas, promover ações de sensibilização de “alunos e professores para estas formas de expressão e para as tecnologias associadas e proporcionar aos jovens os meios de criação e de produção que permitam novas formas de expressão” (Projeto Escolas em Grande Plano, 2021/2022, p. 2). O Cineclube de Viseu possui, desde 1999, o projeto “Cinema para as escolas”, e, da mesma forma que a AO NORTE, divide-se em diferentes atividades e proposições atingindo as escolas da cidade, envolvendo as diferentes modalidades de ensino.
O Cineclube da Mostra, da cidade de Florianópolis (Brasil), originou-se da Mostra de Cinema Infantil de Florianópolis, que acontece há 23 anos, abrangendo uma série de atividades como a exibição de filmes nacionais e internacionais (curtas e longas-metragens infantis), o contato do público com realizadores e escritores através de debates, sorteio de livros, oficinas de audiovisual e shows musicais. O acervo dessa mostra de cinema acabou originando o Cineclube da Mostra, que, semanalmente, exibe filmes gratuitamente em uma sala de cinema da cidade voltados ao público infantojuvenil.
O Cineclubinho Ó Lhó Lhó, também da cidade de Florianópolis, é um desdobramento do Cineclube Ó Lhó Lhó, fruto de um projeto de extensão do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina – IFSC, campus Florianópolis, que conta com a participação e organização de estudantes e servidores do IFSC, bem como da comunidade externa, em funcionamento desde o ano de 2014. A parceria estabelecida com a ONG Casa dos Girassóis, que engloba 20 crianças do Maciço do Morro da Cruz em atividades no horário pós-laboral, acabou sendo a forma encontrada pelo Cineclube Ó Lhó Lhó de aliar a sua motivação de expansão das atividades para fora do IFSC, mas, principalmente, de levar essa comunidade para dentro do instituto.
Analisamos os projetos de educação para o cinema das quatro instituições, observando que os cineclubes portugueses buscam conciliar as etapas de exibição, análise e produção cinematográfica a partir de uma ampla gama de atividades diversificadas, contemplando diferentes dimensões da literacia fílmica. Destacamos que o Cineclube de Viseu consegue obter uma abrangência e continuidade das suas ações, ao estruturar as suas atividades envolvendo os mesmos grupos escolares em anos sequentes e distribuindo, de forma equilibrada, o tempo das intervenções. Também destacamos, na parceria estabelecida com as instituições escolares, que o Cineclube de Viseu e a AO NORTE prezam pela formação dos professores, na tentativa de expansão e continuidade dos processos de educação para o cinema propostos. Destacamos ainda o trabalho desenvolvido pelos dois cineclubes nas etapas de produção fílmica, com ênfase e preocupação na qualidade estética das obras.
Em relação aos projetos dos cineclubes brasileiros, destacamos a ênfase do Cineclube da Mostra e o seu trabalho de divulgação e ampliação do repertório cinematográfico voltado ao público infantil e juvenil, conseguindo junto à comunidade, consolidar e fidelizar, ao longo dos anos, o seu público. Junto ao Cineclubinho Ó Lhó Lhó conseguimos obter um novo olhar sobre a educação para o cinema, partindo do público e das suas necessidades, sendo o cinema e o audiovisual ferramentas de transformação a serviço desse público.
A análise das perceções de cinema, de cineclubismo e de culturas infantojuvenis implicadas nas concepções e práticas das instituições investigadas nos permitiram perceber a presença de duas perspectivas distintas sobre o conceito de cinema e cineclubismo adotados. A perspectiva portuguesa apontou o papel dessas instituições como o de viabilização do acesso a filmes de qualidade artística e estética do cinema infantil, contrariando a oferta das salas de cinema comerciais, bem como a de preservação da memória cinematográfica europeia e portuguesa. O momento da exibição possui um peso muito forte para os dois cineclubes portugueses, bem como para o Cineclube da Mostra. Já a experiência do Cineclubinho Ó Lhó Lhó busca uma maior aproximação com as atuais necessidades formativas do seu público, sendo o cinema e o audiovisual possibilidades de pensar, dialogar, refletir e agir sobre o mundo.
Assim, entendemos que, diante das atuais necessidades formativas das crianças e jovens contemporâneos, os cineclubes são instituições fundamentais ao configurarem-se como espaços de exibição de repertórios cinematográficos e audiovisuais, mas também como potencializadores de experiências formativas pautadas na coletividade, através de práticas de apreciação, análise, experimentação, diálogo e protagonismo desses jovens na construção das suas propostas, ampliando o diálogo desses públicos com o mundo, com as diferentes culturas e com seus próprios pares.
- Fantin, M. (2006). Crianças, cinema e mídia-educação: olhares e experiências no Brasil e na Itália. [Tese de doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina]. Repositório Institucional da Universidade Federal de Santa Catarina. https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/88793
- Figueiredo, M. S. (2024). Cineclubes e a educação para o cinema de crianças e jovens: itinerários portugueses e brasileiros. [Tese de doutorado, Universidade do Minho]. Repositório da Universidade do Minho. https://hdl.handle.net/1822/89275
- Macedo, F. (2020a, 31 julho). Cineclube: conceito e história. [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=B8DDDiQ7Ju0&t=4587s
- Pereira, S. (2021). Crianças, jovens e Media na era digital. Consumidores e produtores? Uminho Editora/Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade.
- Santaella, L. (2003). Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do pós-humano. Revista Famecos, (22), 23-32. http://doi.org/10.15448/1980-3729.2003.22.3229
