Fado Canibal. A reinvenção da música em Portugal

11 Abril 2025

Há quase cinquenta anos, um movimento originado em Manchester, Reino Unido, mudaria de vez a música ao desmistificar e democratizar a produção musical. Portugal, mesmo recém-saído de uma das mais longas ditaduras do mundo, não ficou alheio a esse fenômeno.

Texto de Luiz Alberto Moura

 

Imagem de Nico Knaack na Unsplash

 

Mas, o que realmente é indie?

Em 1977, a banda inglesa Buzzcocks lançava o álbum de estreia Spiral Scratch. Totalmente financiado, produzido, gravado e distribuído pela banda, o disco transformou o processo musical ao expandir os princípios do DIY (do it yourself) e do DIT (do it together), conceitos impulsionados pelo movimento punk, jogando luz na democratização da produção musical, permitindo qualquer pessoa tivesse a possibilidade de gravar e lançar suas próprias músicas, originando o movimento indie.

O surgimento e a evolução das editoras indie portuguesas refletiram essa transformação global, desempenhando papel crucial na descentralização da música e no impulso de mudanças culturais e urbanas. No entanto, as origens do gênero em Portugal são mais complexas do que muitas vezes se imagina.

O movimento indie celebra a autenticidade do cotidiano e a singularidade do indivíduo, dando voz às experiências e perspectivas únicas de pessoas comuns. Em vez de produzir música ou comportamentos considerados ‘normais’, mundanos, o indie busca valorizar o extraordinário nas vivências cotidianas, buscando o único, o não usual.

É a desmistificação das regras. Ele representa o que se deseja ser, construído a partir de experiências vividas/buscadas. Os agentes da cena indie incorporam influências culturais e criam novas formas de produção, tornando-se transformadores do ambiente. Assim, a produção musical no indie é indissociável dos discursos que ela gera. Trata-se de uma rede de linguagens que contribui para a construção de um self e sentimentos de pertencimento. No indie, essas linguagens se manifestam na forma de produção e no impacto que causam na vivência do grupo e na percepção externa. Laços são criados por culturas alternativas que acolhem “excluídos”, permitindo-lhes expressão e reconhecimento enquanto sujeitos. Os fãs adotam as identidades geradas pelos selos como uma forma de se conectar a uma comunidade que valoriza a autenticidade e a resistência às normas. (Reynolds, 2005).

Segundo King, o termo “indie” foi introduzido pelo jornalismo musical britânico, especificamente pelo semanário New Musical Express (NME), na década de 1980, e passou a ser utilizado para descrever mais um estilo visual e sonoro do que uma postura econômica (King, 2012). Paradoxalmente, até mesmo bandas contratadas por grandes editoras passaram a ser associadas ao rótulo “indie”, simplesmente por compartilharem uma sonoridade semelhante à de seus pares em selos independentes, buscando assim a credibilidade intrínseca ao gênero.

Dessa forma, ao se conhecer a “procedência”, ou seja, a editora de um artista, a conexão com sua música torna-se mais fácil e até imediata. Saber que uma banda X pertence ao selo indie Y, cujo trabalho já é familiar, facilita a identificação e a interpretação instantânea. Esse vínculo funciona como prescrição musical, orientando o ouvinte e indicando que, se ele é fã de determinado estilo, aquele selo será sua principal fonte (Moisés Martins, 2004; Hennion, 2011).

O indietuga

Em Portugal, o surgimento do indie está intimamente ligado ao auge do rock local entre 1980 e 1982. Contudo, a saturação do mercado fonográfico observada na segunda metade de 1982 levou a indústria musical a recuar, priorizando investimentos em artistas com retorno garantido, o que resultou na redução drástica das oportunidades para músicos emergentes. Nesse contexto, chegou-se a prever o fim do rock local.

Porém, o movimento já era irrefreável. A popularidade do rock português nos dois anos anteriores deixou uma marca profunda na juventude local, e todos queriam ter uma banda ou, pelo menos, participar de alguma forma. Quando os meios ‘oficiais’ estavam fora de alcance, a alternativa era criar novos caminhos. Nesse processo, a influência dos selos britânicos – especialmente através do trabalho de António Sérgio, conhecido como o “John Peel português” – desempenhou um papel fundamental na consolidação da cena indie no país.

O surgimento e a evolução das editoras indie portuguesas refletem essa transformação global, desempenhando papel crucial na descentralização da música e como catalisadores de mudanças culturais e urbanas no país.

Obviamente, a proliferação de selos indie em Portugal não atingiu as proporções observadas no Reino Unido ou na Espanha, devido ao tamanho reduzido do mercado e aos efeitos duradouros do atraso imposto pela ditadura salazarista. Contudo, o impacto foi igualmente significativo. A partir de 1982, com a criação da Fundação Atlântica, cada novo selo que emergiu carregava consigo um forte impulso por transformação e vanguarda.

Embora não seja a primeira publicação acadêmica a tratar da música independente, Fado Canibal se destaca por se dedicar exclusivamente ao estudo das gravadoras independentes em Portugal, preenchendo uma lacuna importante nos estudos sobre um setor fundamental para a vitalidade e vanguarda da indústria fonográfica.

E qual a importância do tema?

Assim como em outras partes do mundo, o indie reconfigurou o mercado musical português. A partir da criação da Fundação Atlântica, esse movimento ganhou força, transformando não apenas a música, mas também o tecido social e cultural do país. Nos 35 anos de recorte ‘Fado Canibal’ foram analisados 18 selos de diversas regiões, evidenciando seu papel essencial como catalisadores da descentralização da cultura lusa. O estudo envolveu, além da pesquisa bibliográfica, um extenso trabalho de arquivo (jornais, revistas, blogs etc.), análise de gravações e documentos (documentários, programas de rádio, podcasts, entre outros), e dezenas de entrevistas em profundidade com figuras-chave da cena indie portuguesa.

Dessa forma, além de catálogos musicalmente diversos, confirmou-se a hipótese de que as gravadoras indie em Portugal desempenharam papel fundamental nas estratégias de produção e distribuição musicais, na inserção de territórios no mapa musical nacional (por meio de festivais, workshops, exposições, etc.) e no impacto profundo nas comunidades locais. Elas também foram determinantes na superação da precariedade, na falta de opções culturais e até mesmo laborais.

Label managers, artistas e fãs estabeleceram fluxos que permitiram que o indie em Portugal acompanhasse a evolução do gênero no cenário global, ainda que se possa criticar a falta de conexão entre esses circuitos. Desde o romantismo e a recusa em “se vender” que marcaram o início do movimento até os métodos mais profissionais e organizados, com acordos e parcerias com grandes gravadoras e o poder público, o indie português consolidou-se como uma das vertentes mais vanguardistas do país. Multifacetados e ambiciosos, os selos indie em Portugal se configuraram como uma verdadeira alternativa à imagem tradicional do país no exterior.

Territórios foram reconfigurados. Nas grandes cidades como Lisboa e Porto, bairros e regiões ganharam nova vida impulsionados pela cena indie. Pequenas localidades como Guimarães, Lamego e Caldas da Rainha também se inseriram no mapa cultural do país por meio desses selos. Espaços foram transformados em estúdios e locais de concertos, atraindo jovens artistas e empreendedores criativos. As gravadoras indie proporcionaram liberdade e controle criativo, além de abordagens vanguardistas sobre a música.

Este trabalho, obviamente, está longe de uma conclusão definitiva. As dificuldades enfrentadas por essas iniciativas persistem até hoje, o que reforça a necessidade de profissionalização. Um exemplo disso é a difusão internacional dos artistas portugueses, que não ocorreu com a frequência esperada após o país ser o “country focus” do Festival Eurosonic, em 2017. Apesar da visibilidade gerada, os resultados ficaram aquém das expectativas iniciais, o que levantou questões sobre a eficácia das estratégias de promoção internacional e a urgência de circuitos e parcerias mais estruturados para que os artistas portugueses possam aproveitar plenamente as oportunidades no cenário musical europeu e global.

Outro desafio persistente é a precariedade da infraestrutura e a escassez de espaços para a prática musical, resultado da gentrificação nos grandes centros urbanos. Isso tem causado uma concentração da atenção mediática – e da remuneração – em um número reduzido de artistas, em detrimento da vasta quantidade de novos músicos que surgem anualmente no país. Como consequência, a falta de recursos tornou-se uma realidade constante para esses selos, que, como mencionado anteriormente, precisam se desdobrar em diversas atividades para garantir sua sustentabilidade mínima.

Além disso, nos últimos anos, esses selos também foram impactados pela ascensão das plataformas de streaming (MSPs), que, embora prometessem democratizar a distribuição global – permitindo que qualquer pessoa lançasse sua música de forma “oficial” na internet – também trouxeram novos desafios relacionados à monetização, competitividade e visibilidade online.

Em última análise, este estudo não é apenas sobre música, não revela “apenas” a importância das gravadoras indie para a música portuguesa, mas também destaca como movimentos culturais alternativos podem transformar a identidade nacional .O indie português provou ser mais do que uma tendência passageira – foi a confirmação dos impactos iniciados em 1980 e que ressoa até hoje.

‘Fado Canibal’, ao documentar um período significativo na história musical portuguesa, proporciona também uma perspectiva sobre o impacto de movimentos culturais de base na sociedade, particularmente em contextos de transição. As observações derivadas da experiência indie portuguesa podem oferecer paralelos úteis para a compreensão de dinâmicas semelhantes em outros ambientes culturais e geográficos, cada um com suas especificidades e contextos.

PS: “Fado Canibal” é uma pequena homenagem a uma das bandas mais emblemáticas do cenário indie português, o Mão Morta, originário de Braga, que nos seus primórdios esteve vinculado à Ama Romanta, uma das gravadoras mais importantes do gênero em Portugal.

Bibliografia

  1. Guerra, P. (2013). A Instável Leveza do Rock: Génese, dinâmica e consolidação do rock alternativo em Portugal. Edições Afrontamento.
  2. Gonzaga, M. (2018). António Variações: Entre Braga e Nova Iorque. Bertrand Editora.
  3. Hebdige, D. (2018). Subcultura: O significado do estilo (P. Guerra & P. Quintela, Trad.). Maldoror.
  4. Hennion, A. (2011). Pragmatica do Gosto. Desigualdade & Diversidade – Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio, 8, 253–277.
  5. King, R. (2012). How Soon is Now: The madmen and mavericks who made independent music 1975-2005. Faber & Faber.
  6. Martins, M. L. (2004). Semiótica. Universidade do Minho, CECS. https://hdl.handle.net/1822/996
  7. Reynolds, S. (2005). Rip It Up and Start Again. London: Faber & Faber.