O jornalismo televisivo num crepúsculo? Reflexões anexas sobre um exercício em crise

26 Janeiro 2023

Há novas abordagens, novos consumos. O jornalismo deve (re)definir-se. Será que pode e tem tempo? Entre os factos e a narrativa, o jornalismo precisa de fôlego para discernir, do género nobre da reportagem ao delicado espaço da análise.

Texto de Joaquim Franco

1. O crepúsculo.

A opinião pública é condicionada por uma dinâmica comunicacional que não facilita a leitura enquadrada dos factos. Perceciona-se o tempo com pouca ou nenhuma retaguarda. A voracidade mediática impõe a linguagem da síntese, a ideia resumida em frase curta. A contextualização é habitualmente remetida para o plano secundário de um corpo noticioso ou para a análise distante, quando há tempo e espaço para tal. Realça-se o caso pelo caso, alimenta-se o sensacionalismo em espiral, a anormalidade, estimula-se a emoção acentuando um caráter violento ou o ângulo mais escandaloso – tantas vezes parcial, amplia-se o preconceito e evidencia-se o contágio perverso das redes sem rede.

Neste processo, o público absorve uma “verdade” narrada com rapidez, circunscrita ao lead, suscetível de gerar equívocos e falsas perceções, com opinião que se confunde com a notícia, maior influência de “centrais” de interesses e lobbies. O emissor reproduz e o recetor assimila uma factualidade condicionada ainda pelo filtro da escassa memória, pelo particular generalizado e descontextualizado, em que o distante se faz extraordinariamente próximo.

Esta é uma tendência que se acentua. E é, sobretudo, um dilema de orientação, que compromete, em primeiro lugar, responsáveis editoriais.

O recurso a opções laborais de precariedade, reduzindo custos e investimento formativo, tem também como consequência a progressiva perda de memória e experiência nas redações, que passam a ser meramente executantes, cada vez mais jovens, incapazes ou impossibilitadas de discutir, em corresponsabilidade, o exercício da deontologia.

Não é uma crítica ou um estado de alma, mas uma constatação. É notória e emergente a necessidade de reflexão, fôlego e prudência.

O que acontece na reportagem jornalística? Salvaguardando as exceções, vive num crepúsculo, sob o permanente risco da velocidade, da parcialidade, da imposição da curta duração, tantas vezes manipulando inadvertidamente, sintetizando ideias que, na sua complexidade, não podem dizer-se em quatro ou cinco palavras.

Feito de e para a imagem, o jornalismo televisivo está ainda submetido à ambiguidade do visível imediato, construtor de uma realidade que só o é… porque se vê. E, quando não se vê, dramatiza-se em reconstituição.

Ao revelar-se impaciente e acelerado, banalizando a narrativa, queimando etapas – condicionado pelas redes sociais e pela revolução/inovação dos meios de difusão em página digital, que ampliam a precariedade na profissão e impõem ferramentas para delinear métodos mais eficientes –, o jornalismo televisivo precipita-se.

Buscando o subterfúgio da emoção, do ecrã multiusos – como monitor de janelas múltiplas em sala de espera, alimentando a impaciência enquanto correm os números de senha para atendimento –, do live redundante, prolongado para preencher espaços de emissão, torna-se demasiado fugaz, confuso e irrelevante. Embora, há que reconhecer, atrativo no imediato, capaz de alimentar a ansiedade e a expectativa, de segurar audiências cada vez mais disputadas e multifacetadas.

2. Um amanhecer?

A reportagem televisiva exige maior criatividade e mais oportunidades, aproveitando a simbiose com o digital – um potencial de complementaridade a explorar –, dando densidade e calor à produção, mas sem ligeireza, assumindo responsavelmente e com parcimónia que o aparato ficcionado está no fio da navalha e a insinuação é um veneno.

Já há novos hábitos de consumo – aos quais não é alheia a criatividade e originalidade da produção documental distribuída nas novas plataformas de conteúdos –, uma televisão em mudança com o registo do aprofundamento, storytelling e abordagens mais cuidadas, da edição de imagem à escrita, até com avançadas ferramentas narrativas da sétima arte, um jornalismo documental, sedutor na forma, rigoroso no conteúdo, respirado, com amadurecimento e reflexão. Tem de ser o futuro.

Para este novo paradigma faltará a capacidade de investimento dos operadores, eventualmente compensável pela corresponsabilidade social de instituições beneméritas e agentes públicos que, em total transparência e liberdade, entendam a delicadeza da situação em que mergulhou a arte de reportar, a nobreza do jornalismo.

3. A intuição de Kapuściński.

Licenciado em história, jornalista, escritor e ensaísta, Ryszard Kapuściński (1932-2007), de ascendência polaca, ficou conhecido, entre outros trabalhos, pelas reportagens em África nas décadas de 1960 e 1970, retratando genocídios e o fim dos impérios coloniais.

Kapuściński era um prolixo mestre da alegoria. Usava uma prosa refinada, o jogo atrevido das palavras de longo alcance. Nesta rampa de subtis derrapagens linguísticas, abriu “escola” na arte de relatar além do facto, como se este fosse a trave sobre a qual a ginasta exercita os mais fascinantes e sedutores movimentos.

Kapuściński fez carreira em Espanha. Recebeu, em 2003, o Prémio Príncipe das Astúrias. Dedicado aos livros, misturou ficção com realidade. Em última análise, os “maravilhosos e preciosos” livros de Kapuściński, como disse o seu biógrafo, “pertencem à ficção”, cruzam “a linha entre jornalismo e literatura”, tornaram-se referências nesta sobreposição, que ganha espaço no denominado jornalismo literário.

Há um derradeiro esforço de Kapuściński que deve ser lido nas reflexões sobre o presente e o futuro do jornalismo, sobretudo o televisivo.

Numa espécie de procura de redenção ou clarificação de posicionamento, em Os cínicos não servem para este ofício (1),Kapuściński relança o debate sobre o exercício contemporâneo do jornalismo, confrontando a racionalidade jornalística com o(a) jornalista, pessoa concreta.

Kapuściński tem a convicção “de que, para ter direito a explicar [o jornalista] há que ter um conhecimento direto, físico, emotivo, olfativo, sem filtros nem escudos protetores, sobre aquilo de que se fala”, sendo “errado escrever sobre alguém com quem não se partilhou pelo menos um pouco da sua vida”.

A reportagem é um retrato ou uma interpretação? Kapuściński entende que “o bom jornalismo, além de descrever um acontecimento, tem também de explicar o que aconteceu”, enquanto “no mau jornalismo, pelo contrário, encontramos apenas a descrição, sem nenhuma ligação ou referência ao contexto histórico”.

Para fazer a diferença, há que conjugar também a simplicidade com o cuidado e a sofisticação narrativa. O(a) repórter não é apenas um fazedor de frases que descrevem o que vê – e só isto é já um trabalho de enorme responsabilidade, sujeito a inúmeras variáveis –, é o(a) portador(a) de um momento e do seu contexto, com tudo o que isso implica, nomeadamente o facto de, na maioria das vezes, estar a falar de pessoas. À objetividade, como procura orientadora, Kapuściński acrescenta a necessidade de dar corpo e alma ao exercício, sem por em causa o objeto.

Recordadas por Jacinto Godinho no Manual de Reportagem (2), um excelente instrumento de trabalho para novas gerações de repórteres, organizado por Pedro Coelho, Ana Isabel Reis e Luís Bonixe, fazem eco as palavras do cronista grego Tucídides (3), que, já nos anos quatrocentos antes da era cristã, considerava seu dever, entre prosa densamente pormenorizada e complexos paradoxos, relatar “os factos da guerra” depois de “investigar cada detalhe com o maior rigor possível”, sejam os diretamente observados ou os que são fornecidos por terceiros.

Ao detalhe numa estória, Kapuściński junta sal e pimenta, o sabor das palavras criativas, com um pressuposto, uma regra sagrada: “Se, entre as muitas verdades possíveis” o jornalista “elege apenas uma e a persegue cegamente, esta vai converter-se numa falsidade e o jornalista passa a ser um fanático” da manipulação.

Este ofício não é para qualquer um(a) e blinda-se na consciência. Kapuściński alarga o espectro moral: “O verdadeiro jornalismo é intencional, fixa-se num objetivo e tenta provocar algum tipo de mudança, (…) informar de maneira que ajude a humanidade e não fomentando o ódio ou a arrogância”. A notícia, defende, “deve servir para aumentar o conhecimento do outro, o respeito do outro”.

O(a) jornalista deve ser então um(a) humanista?! “As guerras começam sempre muito antes de se ouvir o primeiro disparo, começam com uma mudança no vocabulário dos media”, lembra.

Temos de reconhecer que todas estas metamorfoses e intuições de Kapuściński andam num limbo. Podem dar exuberância à narrativa, trazer um sopro ético e criativo ao exercício, mas também gerar equívocos.

4. O risco.

É redutor o argumento da falta de cultura no consumo mediático. O ónus não está só do lado do recetor e nunca o exercício jornalístico, necessariamente criativo, mas livre, transparente, rigoroso e contextualizado, foi tão importante como a literacia mediática.

Numa reflexão prospetiva, a investigadora Carla Batista desenha um cenário tão expectável quanto inquietante. Se o jornalismo vai ser “mais interpretativo, engajado”, então é a democracia que fica “em maior perigo”, os públicos “mais divididos ideologicamente e diversos nas suas identidades”. É necessária “uma resposta ética (…) capaz de fortalecer o jornalismo” (4).

Em Infocracia (5), Byung-Chul Han associa-se aos mais pessimistas entre os pensadores do fenómeno mediático e aprofunda as dinâmicas da comunicação. Diz o filósofo que a “mediacracia” tem uma “arquitetura particular”. Fazendo a analogia com um “anfiteatro”, Byung-Chul Han descreve os “destinatários” da informação como espetadores “condenados à passividade”, que consomem de forma parcial e acrítica. Uma forma mais atual de reafirmar Óscar Wilde, para quem “a verdade é pura e simplesmente uma questão de estilo” (6).

Sobrevivem os factos, a ética e a deontologia? Ignacio Ramonet intuía que “pouco importa que [as notícias] sejam verdadeiras ou não”, pois o jornal televisivo tende a propor “um universo onde tudo é verdade, tal como o seu oposto” (7).

Bibliografia

  1. Kapuściński, Ryszard. (2008). Os cínicos não servem para este ofício. Lisboa: Relógio d’Água.
  2. Godinho, Jacinto. (2021). Genealogias da Reportagem, in Manual de Reportagem. Coelho, Pedro & Reis, Ana Isabel & Bonixe, Luís [Org]. Covilhã: LABCOM, Comunicação & Artes.
  3. Tucídides. História da Guerra do Peloponeso. Raul M. Rosado Fernandes e M. Gabriela P. Granwehr [Trad]. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (2013).
  4. Batista, Carla. (2021). Cuidar o sensível: Ética da reportagem e experiência democrática, in Manual de Reportagem. Coelho, Pedro & Reis, Ana Isabel & Bonixe, Luís [Org]. Covilhã: LABCOM, Comunicação & Artes.
  5. Han , Byung-Chul. (2022). Infocracia. Lisboa: Relógio d’Água.
  6. Wilde , Óscar. (1891). Le déclin du mensonge. Paris: Complexe (2010).
  7. Ramonet, Ignacio. (1999). Tirania da Comunicação. Porto: Campo das Letras.