O olhar de Úrsula: Urgência de repensar a (inter)nacionalidade da ciência e inovação

03 Março 2021

Este texto apresenta um ponto de vista acerca das dificuldades de alguns países no acesso aos resultados científicos. A partir da observação de alguns dos episódios mais marcantes na disponibilização das vacinas aos diversos países, fazem-se diversas considerações sobre os riscos da (inter)nacionalidade da ciência no momento presente.

Texto de Emília Araújo (investigadora do CECS)
E-mail: emiliararaujo@gmail.com

Yves Herman (REUTERS)

O olhar de Ursula von der Leyen, ao falar desde a Comissão Europeia, contra o Reino Unido sobre a encomenda de vacinas à AstraZeneca, não deixa dúvidas sobre a fragilidade dos acordos que regulam a produção e a disponibilização das vacinas para os países da União Europeia e, a bem dizer, para o resto do mundo.

O amaranhado das relações entre cientistas, empresas e possibilidade de lucro fácil é tão complexo, quanto desconhecido e, de certeza, dramático para quem está fora das centralidades que a própria União Europeia foi construindo e, com ela, o tal “resto do mundo. Mal irão as vidas dos e das infetadas por todo o mundo, não obstante a capacidade científica instalada. Mal irão todos e todas os infetados potenciais de crises futuras como esta, que mais medicamentos e vacinas mobilizarão e, portanto, novas centralidades ajudarão a construir.

Mais voltemos ao olhar de Ursula: ele não deixa dúvidas também sobre o acentuar de fragilidades incomensuráveis para grande parte dos países que servem os propósitos de uma internacionalização e de uma internacionalidade da ciência enviesados, manipulatórios e nada simétricos, sobretudo no que toca à redistribuição e partilha dos resultados científicos e acesso às inovações daí decorrentes.

Sabemos há muito que os princípios mertonianos da ciência internacional e transnacional orientada para o bem comum, ou a ciência do universalismo e da democracia entraram em falência, desde o momento em que a sociedade do conhecimento centrou o olhar sobre a produção da ciência e a sua capacidade de se transformar em ”ouro”, ou seja, alimentar novas empresas, gerar novas necessidades e movimentar o capital, sem fronteiras, sem barreiras e debaixo das mais selvagens estratégias de camuflagem e contrabando ideológico.

Durante os últimos anos, a discussão não tem sido tão acesa como deveria, porque se vive num clima de enorme valorização da ideia de que a ciência é, por inerência, aquele tipo de área que nos faz bem a todos e a todas e que produz necessariamente avanços que servem a humanidade, como quem diz, mundo todo, independentemente da idade, da raça, do género ou sobretudo, a nacionalidade.

As organizações internacionais, com poder de aconselhamento, supervisão e ou intervenção a nível supranacional, incluído Comissão Europeia, ONU, UNESCO; OCDE e claro, a OMS, são, como sabemos, organizações complexas, com as suas potencialidades, mas também com enormes fragilidades no que respeita à sua capacidade efetiva de mediar os conflitos abertos ou implícitos entre países e sobretudo, hoje em dia, entre grandes corporações internacionais, cujos modelos de funcionamento e dinâmicas de extração de lucro estão absolutamente ligadas a estratégias de gestão e aproveitamento do mundo digital.

Todavia, meia palavra basta para bom entendimento: a postura e os discursos da OMS foram desde o inicio desta pandemia, bastante cautelosos e persistentemente insistentes sobre a necessidade de se pensar em medidas de intervenção e, sobretudo, numa ciência que sirva todos, que tenha em conta os princípios do universalismo e do communalismo, princípios a partir dos quais a ciência se impôs na sociedade e se comprometeu a ser fonte e o motor dinâmico da democracia e o diálogo.

Mas o compromisso não bastou e não basta, sem que cientistas por todo o mundo, governos e outras entidades supranacionais entendam a necessidade de interrogar muito bem qual é o funcionamento das atuais colaborações internacionais e qual é o real valor de termos uma ciência internacional(izada) financiável por organismos internacionais.

Cientistas sociais alertaram há bastante tempo para o problema que fica muito mais evidente hoje, por vivermos sob uma catástrofe e tão grandes proporções e complexidades: a valorização da internacionalidade e da internacionalização da ciência tem se ser equacionada a partir do que são as reais possibilidades, capacidades e, sobretudo, do que é a robustez da politica (dos tomadores de decisão) para, por um lado, discernir o que é mesmo necessário para os seus territórios e para os seus países, no tempo imediato e no futuro; e por outro, determinar com exatidão e conscientes das complexidades das relações de interesse e de poder em que a ciência está hoje embrenhada, quais são as recompensas de curto e longo prazo que se obtém dos esforços realizados na internacionalização da ciência.

Como a governação Trump mostrou nos últimos anos, ao esmagar as migrações de pessoas mais pobres do México, a ciência que circula no mundo, a ciência que move perguntas obre o futuro-futuro dos países, do planeta e do cosmos; é uma ciência localizada em terra, é uma ciência, cujas patentes estão controladas pelas leis da sua nacionalidade, onde se faz, produz e se liberta. Não interessava a Trump toda esta migração, mas sempre interessou a Trump e aos Estados Unidos, em geral, que os melhores cérebros e prometedores cientistas mexicanos fizessem ciência de ponta de nacionalidade (a da ciência) norte-americana. Nos últimos anos, vários países, sobretudo do Norte Global, embarcaram em estratégias agressivas de internacionalização que implicaram criar filias de centros e universidades noutros países e cujas produções e inovações, mesmo realizadas nesses territórios, sejam consideradas nacionais dos países onde está a sede da universidade e/ou empresas.

Os Estados Unidos da América e o Reino Unido são aliás, países com bastante know-how no que respeita à forma como canalizam as recompensas da mobilidade de cientistas e tornam nacionais as produções cientificas, por via da atração de cientistas promissores; ou por via da criação de protocolos e outras ligações jurídico-legais que firmam essa “nacionalidade da ciência” a partir da instituição/país de origem.

Perante a crise que vivemos e face à qual a ciência tem um papel central, em todas as áreas, a pergunta que se faz é tão simples, quanto fundamental: como é possível não se ter previsto, particularmente os países com mais vulnerabilidades (lembremos que o crescimento de centros gravitacionais internacionais se faz à custa do esvaziamento de outros que se tornam assim vulneráveis), planos alternativos de regulação das produções da ciência, das patentes e inovações que prevenissem o estado de secundarização ou terciarização que agora se verifica em relação à vacina, mas que se verificara já antes relativamente a várias outras inovações na área da saúde e em várias outras áreas e que se verificarão no futuro?

Somos pressionados e pressionadas de forma inexprimível para a internacionalização, sob a forma de mobilidade, de colaborações em projetos, de escrita e publicação de artigos em línguas internacionais (inglês). Somos compelidos a incluir cientistas estrangeiros nas publicações, nas propostas de projetos a financiar por organizações, que na estrita dependência de outras organizações internacionais. Somos compelidos a colaborar, a colaborar e a seguir as padronizações internacionais.

Pelo meio, somos enquanto cientistas impelidos a escolher temas de “vanguarda”, ou seja, os mesmos que a ciência internacionalizada quer e que o ideal da transnacionaldiade e universidade na ciência camuflam e alimentam (ou permitem). Todavia, deixamos de, enquanto cientistas, nos preocuparmos com os problemas que nos afetam diretamente no dia a dia, nos nossos territórios, ou no nosso país. Colaboramos menos com e entre nós, procuramos adivinhar qual é a pergunta mais internacional.

O capitalismo académico e científico predatório alimenta inexoravelmente toda a máquina de raciocino linear que estabelece a cadeia de comando, desde os centros e países que dominam os meios de produção, porque se robusteceram ao longo do tempo para atrair financiamento de alto nível em áreas de ponta e capitalizaram a atração de cientistas promissores de todas as partes do mundo, dominando, depois, o patenteamento e toda a cadeia de inovação no mercado.

O tempo é muito escasso, particularmente em contexto europeu para que países pequenos, como Portugal, lutem contra a centralidade e o poderio de outros centros que ajudamos a alimentar de forma estonteante nos últimos anos, na base da boa vontade de sermos internacionais e internacionalizar a ciência. No enanto, é de certeza tempo de, pelo menos, tomarmos muita consciência do que cientistas e responsáveis políticos podem ou devem fazer, na prática da ciência e na regulação da ciência, no espaço nacional e, sobretudo, no posicionamento a nível internacional. É tempo também para pensar as relações da ciência em planos mais complexos, mediados por interesses e relações de poder que são absolutamente fazedoras de desigualdades sociais à escala nacional, mas, sobretudo, internacional.


Este trabalho é apoiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Financiamento Plurianual do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade 2020-2023 (que integra as parcelas de financiamento base, com a referência UIDB/00736/2020/, e financiamento programático, com a referência UIDP/00736/2020).

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