Organizações do Terceiro Setor: de invisíveis a transparentes

14 Janeiro 2018

O Livro “Vozes Plurais – a comunicação das organizações da sociedade civil” recentemente lançado pela editora Sistema Solar, com o apoio da SOPCOM – Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação, vem iluminar a premência de uma reflexão em torno da comunicação estratégica no Terceiro Setor. Sobretudo se associarmos a obra ao contexto de crise no setor, originado pelo caso Raríssimas. O assunto marcou a agenda mediática do final de 2017, lançando uma nuvem de suspeição quanto à gestão desta organização sem fins lucrativos, suportado em denúncias de ex-colaboradores sobre utilização dos recursos para benefício pessoal da Presidente, bem como favorecimento de familiares. Tais relatos permitem antever uma descredibilização das organizações do Terceiro Setor em Portugal, por efeito de contágio, a exemplo do que já ocorre a nível internacional, com as ONG.

Texto de Sara Balonas (investigadora do CECS)

A reflexão proposta em seguida organiza-se em três ângulos: (1) as ideias feitas sobre as organizações do Terceiro Setor; (2) o papel da comunicação da profissionalização do Terceiro Setor; (3) como criar um sistema de “vacinação” nas organizações do Terceiro Setor, com o auxílio da comunicação estratégica, de modo a evitar o referido efeito de contágio.

Quanto a ideias feitas, isto é, às verdades cristalizadas sobre o funcionamento do Terceiro Setor: é fundamental compreender que o paradigma das quermesses e das ações de caridade pontuais há muito cedeu a vez a estruturas que operam na esfera social com a preocupação de cumprirem o seu propósito a longo prazo. E tal implica gerar lucro, condição fundamental para garantir o trabalho de continuidade e, desejavelmente, a expansão da atividade. É condição de sobrevivência e de sustentabilidade. Logo, uma organização sem fins lucrativos deve ser lucrativa. O paradoxo é apenas aparente pois tal lucro não reverte (ou não deveria reverter) para os responsáveis mas sim para a causa. Logo, o retorno é legítimo se, em última análise, for social (reinvestido na atividade) e não financeiro (para benefício dos fundadores). “Os excedentes que sejam gerados na atividade destas organizações são reinvestidos no cumprimento da sua missão, sem distribuição a dirigentes, a colaboradores, a utentes, ou a clientes”, assim o defende Franco (2015, p.14). Outro aspeto a clarificar prende-se com o questionamento dos custos fixos com a estrutura de gestão. Efetivamente, as organizações do Terceiro Setor só funcionam se tiverem uma equipa profissional, com direito a remuneração fixa, apoiada com recursos técnicos e logísticos. São custos fixos inquestionáveis na medida em que são um pilar fundamental do funcionamento responsável. O voluntariado é uma componente muito relevante no funcionamento destas organizações mas não pode ser considerado a principal força de trabalho. Todavia, já no que respeita aos órgãos da Direção de uma instituição deste tipo, o ideal é que os seus membros se voluntariem de forma graciosa – é o ideal pois estarão em excelentes condições de administrar de forma isenta os recursos disponíveis sem correrem riscos de tentações de poder ou acusações do tipo “benefício sobre causa alheia”, como parece ocorrer com a Associação Raríssimas. E tal é possível? Há exemplos de organizações do Terceiro Setor que funcionam desta forma – com uma equipa de direção que traça as diretivas e acompanha a sua implementação sem retorno financeiro ou de outro tipo. Desejável? Sim, se pensarmos que talvez seja esta a única forma de garantir isenção e transparência.

A questão da transparência inspira a abordar o segundo tópico proposto: o papel da comunicação na profissionalização do Terceiro Setor. O livro mencionado nas primeiras linhas deste artigo aborda diferentes perspetivas dentro do tema. A importância de saber comunicar e, sobretudo, de fazê-lo bem, prende-se com um conjunto de evidências. A realidade é que os diferentes públicos – membros internos, beneficiários, doadores, voluntários, jornalistas, cidadãos em geral – sabem pouco sobre as organizações com quem têm ou não envolvimento direto. Saberão, quando muito, um fragmento da sua natureza e funcionamento, decorrente do tipo de relação. Mas é um fragmento superficial, uma parcela da realidade: conhecem porque tencionam doar, porque tencionam ajudar ou porque precisam do seu apoio. Porém, é uma relação frágil. Não existe um contrato de confiança forte porque não há, na maior parte dos casos, a construção de uma relação contínua e transparente através de uma estratégia de comunicação interna e externa. Em suma, o contrato de confiança não se concretiza em pleno. Poder-se-á mesmo dizer que muitas destas organizações são invisíveis aos olhos da sociedade – são vistas por aqueles com que elas contactam mas de forma operacional e intermitente.  Por conseguinte, sem redes de confiança criadas pela comunicação de forma estratégica, com visão de longo prazo, estas organizações estão mais expostas à crítica e à difamação, facilmente inflamáveis nas redes sociais. Para clarificar este pensamento, sugerem-se dois exemplos: (1) quando se conquista um doador – particular ou empresa – existe a sensação de missão cumprida, de etapa ganha. Porém, um doador que não seja permanentemente envolvido na ação, com acesso ao chamado retorno social (dados resultantes da sua doação) e que não conheça o modus operandis da Instituição, é um futuro ex-doador em potencial, sobretudo, quando ocorre uma situação de crise reputacional, como o caso Raríssimas. Pelo contrário, se estiver bem informado e emocionalmente envolvido, será uma mais valia, talvez até um embaixador da instituição. Saberá avaliar para além das pessoas que a integram ou das crises que as fragilizam. Porque existe uma relação. O mesmo sucede com um beneficiário – se compreender o esforço da instituição que o/a apoia, se for envolvido e chamado a fazer parte da vida da instituição (conhecendo o espaço, as pessoas, sabendo como nasceu o projeto, entre outro tipo de ligações emocionais) estará em melhores condições de, também ele, ser embaixador.

A invisibilidade quanto à ação das organizações do terceiro Setor é preocupante. Porém, o seu impacto é cada vez mais incontornável: mais de 55 mil entidades, 260 mil trabalhadores, 5,5% do emprego total remunerado em Portugal, 4,6% do total das remunerações pagas em toda a economia e um contributo de 3,8% para o Produto Interno Bruto (PIB) que resulta do trabalho voluntário.[1]  Segundo Parente, “ o Terceiro Setor tem granjeado uma relevância crescente enquanto campo de geração de emprego e de fornecimento de produtos e serviços, promovendo a dinamização social e económica do país (2014, p. 94). Eis um breve mas expressivo retrato da economia social em Portugal. E, contudo, não é conhecido.

Por outro lado, tornar visível comporta riscos. É necessário que estas instituições não sejam obscuras na sua gestão e ação. Isto é, têm que ser verdadeiramente íntegras até porque a sociedade é vigilante e está, cada vez mais, desconfiada. Ou seja, é fundamental comunicar mas de forma transparente, sem opacidade, seguindo o imperativo da prestação de contas. Este é o desafio: passarem de invisíveis a transparentes, com toda a responsabilidade que tal passo implica.

Eis-nos chegados ao terceiro ângulo de análise: como criar um sistema de “vacinação” com o auxílio da comunicação para evitar o efeito contágio. O modelo proposto é o da transferência das boas práticas emanadas pelos princípios da comunicação estratégica para as práticas de gestão do Terceiro Setor.

Uma mudança de paradigma que desafia a organizações a serem menos reativas. Que as desafia a  construírem um contrato de confiança com os vários públicos que lhes permita mais solidez em situações de crise. De que modo? Alguns exemplos: passar do press release  episódico ou da campanha de angariação para um plano continuado de ações de comunicação, que tenha em consideração a dimensão organizacional. Que estabeleça os modos de relação internos, os fluxos comunicacionais, bem como a transmissão clara da sua missão, visão e valores. Ao nível externo, a definição dos públicos prioritários, do posicionamento e das mensagens chave, assim como a articulação harmoniosa entre técnicas de comunicação online e offline. Em resumo, trata-se de aceitar que a dimensão estratégica da comunicação é essencial à sustentabilidade das organizações do Terceiro Setor. Não parece haver resistência à ideia. Contudo, continua a existir resistência à sua concretização.

 

[1] Dados referentes a 2010, publicados pelo Instituto Nacional de Estatística e a Cooperativa António Sérgio para a Economia Social (CASES), de acordo com artigo do Observador: http://observador.pt/2016/05/19/o-que-e-e-o-que-vale-a-economia-social/, acedido a 14 de janeiro de 2018.

 

Referências bibliográficas:

INE (2013). Conta Satélite da Economia Social 2010. Lisboa: Portugal.

Franco, R. (Ed.) (2015). Diagnóstico das ONG em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

Parente, C. (Ed.) (2014). Empreendedorismo Social em Portugal. Porto: Universidade do Porto, Faculdade de Letras.