Questões de tempo e espaço: Do teletrabalho, ao “ficar em casa”, passando pelo confinamento

09 Abril 2020

O teletrabalho propõe um conjunto de alternativas ao uso do tempo e do espaço de trabalho remunerado e tem sido usado como estratégia para a organização do tempo, por várias empresas, principalmente quando as atividades profissionais envolvem o intensivo de tecnologias de informação e de comunicação. O teletrabalho realizado em casa corresponde a um tipo específico de teletrabalho que implica o uso e o espaço da residência. Este texto é uma reflexão sobre o modo como este tipo de teletrabalho, de que se socorrem muitas empresas, implica considerar várias características desse tempo e espaço da habitação, que fazem com que a experiência de quem está em teletrabalho seja facilitada, ou fique dificultada e imponha estratégias de evitamento de conflitos entre tempos e temporalidades. Neste sentido, o texto sugere algumas questões que importa considerar, perante o quadro da crise pandémica e a necessidade de confinamento em casa.

Texto de Emília Araújo (investigadora do CECS)
E-mail: era@ics.uminho.pt

Fotografia da autora

A forma mais adequada proposta para fazer face à evolução da pandemia COVID 19 é o recolhimento em casa. Para facilitar este processo, têm sido divulgadas medidas que favorecem a multiplicação de tarefas realizáveis em casa, ou a partir deste espaço. Rapidamente, várias entidades intensificaram a oferta de bens e serviços através de plataformas de comunicação online. Amplificaram-se as possibilidades de comprar a partir de casa, assistir a aulas em casa, ou trabalhar em casa. Intensificaram-se também os esforços de regulação, em especial do teletrabalho que é intensamente sugerido às empresas. Não existem dados disponíveis atualizados sobre a adesão a esta modalidade.

Todavia, atendendo à tipologia de algumas atividades, cujos espaços físicos normais de trabalho estão encerrados total, ou parcialmente, é possível perceber que neste momento há por todo o mundo milhares de pessoas que, ou passaram a trabalhar em casa, ou aumentaram o tempo de trabalho remunerado, em casa. Em paralelo, existem também milhares de pessoas que teriam aderido a esta modalidade, tendo tido oportunidade de reunir as condições para tal previamente.

O teletrabalho expandiu-se a partir dos anos 2000, com a sofisticação das tecnologias de informação e comunicação e a emergência de uma série de atividades profissionais novas, enquadráveis no desenvolvimento da globalização e da sociedade da informação e do conhecimento.  Entretanto, há um vasto conhecimento acumulado sobre as potencialidades e as dificuldades que o teletrabalho implica, para as pessoas, individualmente, para as famílias e para as empresas e instituições, assim como para os governos, principalmente no que se refere aos enquadramentos legais. Existem várias modalidades de teletrabalho e nem todas passam pelo trabalho em casa. Em muitos casos, o teletrabalho traduz situações de trabalho à distância, portanto, quem o pratica pode estar em vários outros espaços físicos, em nada coincidentes com o lugar onde as pessoas habitam e coabitam.

Perante a pandemia COVID 19, a sugestão do teletrabalho pressupõe o uso da casa, definindo esta como o espaço onde as famílias vivem e se juntam e que, sendo maioritariamente um espaço de reprodução; assume neste momento, de forma mais amplificada, funções de produção – sejam estas relacionadas com o desempenho específico de uma atividade profissional, sejam atividades que contribuem, ou estão alinhadas, com essas mesmas funções de produção, tais como as associadas ao ensino e aprendizagem.

Embora o teletrabalho, como se disse, fosse uma modalidade em crescente penetração e que se deve ao progresso da digitalização, esta realidade coexistiu, em grande parte, com algum esvaziamento das atribuições da casa enquanto espaço de reprodução, de descanso e de repouso. As últimas décadas foram atravessadas por uma enorme aceleração social e técnica. Os usos do tempo das famílias confrontaram-se com vários conflitos de ritmos e de temporalidades. Por isso, os espaços de habitação (normalmente associados à “casa”) têm sido considerados como espaços de “transição”, por serem lugares, paradoxalmente, de “passagem” e não de estadia.

Extensa literatura foi produzida sobre esta questão, nomeadamente em contexto urbano, tendo sublinhado essa ideia da ausência de tempo para viver e sentir a casa. Uma das críticas recorrentes ao exercício do teletrabalho no espaço da casa prendem-se com aquilo que Eviatar Zeruvabel designou “ever availability”. Por um lado, dada a possibilidade de a casa se tornar para as pessoas e, sobretudo dadas as enormes potencialidades das tecnologias de informação e de comunicação, um espaço-tempo de disponibilidade contínua perante as exigências dos empregadores e/ou chefias. Por outro, devido ao facto de o tempo em casa se tornar facilmente permeável a um leque vasto de solicitações realizadas digitalmente, ou através de contacto físico, por familiares, vizinhos e conhecidos que não reconhecem integralmente o tempo em casa como privado, seja quando usado para realizar tarefas remuneradas, seja quando usado para atividades que caem dentro do tempo pessoal, familiar e ou de lazer.

Destacamos, ainda, um outro aspeto que importa para entendermos o dia a dia de muitas pessoas hoje. O teletrabalho não significa sempre que a “transladação” das atividades de tipo produtivo para a casa possa ser uma forma de ganhar tempo nas deslocações; evitar gastar tempo nas interações sociais menos diretamente produtivas; ou não despender dinheiro a comprar tempo no cuidado a crianças e ou a idosos, entre outras atividades.

Ao funcionar como um espaço-tempo de convergência destas atividades e multiplicando-se em várias funções cujas temporalidades se distinguem e apõem, o teletrabalho também pode conviver com ansiedade e aumento de responsabilidades para um ou vários membros dos agregados. Daí muitas pessoas relatarem também que o teletrabalho os leva, não a desacelerar relativamente às funções que tinham ou teriam se a rotina de saída fosse sair e entrar em casa, mas a acumular ainda mais as atribuições.

A “casa” que se deseja como espaço de repouso e descompressão, rapidamente pode passar a ser, sobretudo, um espaço-tempo de “confinamento”. Quer dizer, o dia a dia,  obriga-se a ser “passado”, minuto a minuto, no mesmo espaço físico, ainda que uma estratégia seguida por muitas pessoas, e por vezes, inconscientemente, seja, não só a de criarem as suas próprias rotinas que estruturam o dia, como a de alterar os espaços usados em casa, dispersando a sensação de estar sempre no mesmo local. Isso pode ser mais facilmente exequível, se o trabalhão implicar o uso de um computador portátil, ou outros média equivalentes.

Voltemos à palavra “confinamento”, destacando que nos parece muito mais ajustada ao momento que vivemos perante a pandemia COVID19, do que a expressão isolamento, ou a necessidade do “ficar em casa”. Na realidade, o que acontece neste momento é termos milhões de pessoas em casa, por obrigação, isto é, a que foram sujeitas compulsivamente. Portanto, para grande parte, isso correspondeu a comprimir todo o seu tempo, num único espaço-tempo, com muitas singularidades e, sobretudo, quando partilhado por outros, também sujeitos ao mesmo confinamento, mas cujas temporalidades são diferentes.  Para quem realmente era ou é teletrabalhador se vê na necessidade de alienar de várias formas o poder sobre o seu tempo,  “o confinamento” não é de todo equivalente a “ficar em casa”, precisamente porque ser-lhe-á necessária uma readaptação que envolve todos os outros que partilham o mesmo espaço, embora com ritmos e tempos distintos e que fazem desse mesmo espaço interpretações e significações diversas, mas que podem ser disruptoras e psicologicamente desgastantes.

O tempo de “confinamento” pode ser, no mesmo espaço, difícil de passar por ser “em abundância” e não se “saber o que fazer com ele” e aí temos estratégias diversas de “fazer” tempo que chegam ao divertimento no uso da casa para um leque diversidade de atividades nos últimos menos comuns neste espaço; ou pode passar demasiado rápido e “voar”, porque é escasso para o desempenho de  todas as atribuições que, ou continuam, ou foram transladadas para casa. “Ficar em casa” é ainda para a maior parte das crianças, a possibilidade de estar mais tempo com os seus brinquedos, viver mais o quarto e gozar de tempo com os pais. Mas o “confinamento” pode implicar “controlar” e disciplinar esse tempo, mesmo que elas não compreendam. O uso deste espaço para o tempo da “produção” da escola traz desafios significativos à gestão do tempo-espaço em casa e, em particular, para quem acumular o teletrabalho em casa.

Podemos ilustrar todas estes perfis de entendimento e uso do espaço-tempo de “casa”, mas pensamos ser mais relevante nesta fase deixar algumas notas sobre a necessidade de entender muitas das ocorrências deste momento histórico de modo ponderado, não vislumbrando nelas, nem panaceias de resolução de problemas, nem brechas para tomadas de decisão de tipo oportunista.

Para este tempo é sensato arcar com a autodisciplina de conceber e desenhar formas de coabitação de ritmos no espaço de casa, mas isso é feito na base deste contrato tácito que se estabelece em nome de um estranho leviatã que se ergue.

O diagnóstico às condições em que a “casa” – que diverge em forma, tamanho, localização e condições – se torna e assume lugar de produção é fundamental, de modo a avaliar como, em que circunstâncias e à custa de que perdas e ganhos, essas alterações são produzidas. Este diagnóstico e avaliação são necessários e válidos, se considerarmos todas as reflexões que têm sido realizadas até ao momento, quer sobre o teletrabalho e as novas modalidades de organização dos tempos de trabalho, quer sobre as implicações da digitalização nos tempos individuais, familiares e de interação (Chatzitheochari e Mullan (2019), mesmo que esta possa estar a ser uma aliada na gestão da pandemia.

Argumento adicional é o facto de a análise da “casa” fazer notar as diversidades e as desigualdades sociais que atravessam a sociedade, naturalmente incluindo as de classe e género. Neste ponto, reforça-se o facto de a casa não poder se definível como algo homogéneo, dividido em espaços perfeitamente “atribuídos” e funcionalizados. Em muitas situações, a “casa” pode ser pensada como um espaço único, que favorece o uso de diversos kits em permanente montagem e desmontagem, conforme a hora do dia, ou a necessidade de cada um dos seus membros, o que pode gerar a impressão de não separação de tempos e espaços e gera contínuos entre tempos livres e tempos “ocupados”, daí decorrendo, também implicações socio emocionais. A mesa de jantar é mesa de trabalho dos pais, secretária de aula das crianças, estante de livros, no mesmo dia, em horas distintas. A sala ou o corredor servem para jogar à bola, fazer vídeo conferência e praticar desporto. O mesmo tempo é atravessado por diferentes ritmos, que revelam o estado das relações, podem sobrepor-se e implicam readaptações, perante as quais a investigação e a análise são fundamentais.

Há muitos tipos de “casa” e alguns dos espaços em que neste momento se é obrigado a viver continuam apenas a ser meros “tempos-espaços de vida”. Aproveitar para ver e refletir sobre o filme “Denise telefona”, de Hal Salwen, já com alguns anos, pode ser também uma sugestão para o tempo livre, em confinamento.

 


Este trabalho é apoiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Financiamento Plurianual do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade 2020-2023 (que integra as parcelas de financiamento base, com a referência UIDB/00736/2020/, e financiamento programático, com a referência UIDP/00736/2020).

Este trabalho está licenciado com uma licença Creative Commons – Atribuição-Não Comercial 4.0 Internacional.

 

Referências Bibliográficas

Chatzitheochari, S. & Mullan, K. (2019). Alone together: how mobile devices have changed family time. The conversation. Retirado de https://theconversation.com/alone-together-how-mobile-devices-have-changed-family-time-111478

Zerubavel, E. (1981). Hidden Rhythms: Schedules and Calendars in Social Life. University of California Press.