Redes que rimam

09 Setembro 2025

Nas redes tudo é narrativa, discurso, ponto de vista. Palcos de pós-verdades, tendências e nostalgias, às vezes as redes também rimam. Estudar algo como os movimentos rap na internet traz a necessidade de harmonizar metodologias que nos permitam entender as relações e lógicas comunicacionais entre humanos e não-humanos.

Texto de Davide Gravato (Investigador CECS)

 

Figura 1. Redes de interações em posts de Facebook

 

Um “gosto” numa publicação numa rede social não se resume a uma interação com o autor ou comunidade daquele post. Trata-se também de um diálogo com algoritmos. Então enquanto produzem significados, as nossas ações na internet também deixam rastros. No fim do dia, aquele “gosto” diz mais sobre nós quando o vemos em relação à rede, seja de atores humanos ou não, do que quando o analisamos enquanto simples posicionamento discursivo. E claro, quanto mais complexo o objeto cultural que vamos observar na internet, mais dinâmicas precisam ser levadas em conta na nossa metodologia. NetnoRetratos são a minha sugestão para estudar objetos culturais complexos na internet, ou na verdade, qualquer coisa no meio online. Funcionam como rimas entre enquadramentos teóricos e práticos com abordagens transdisciplinares, método esse que apliquei na análise dos movimentos rap em Portugal e Brasil. Mas que instrumentos este método toca?

Existem três fases de um NetnoRetrato. A primeira é dedicada a uma contextualização alargada do objeto. Não basta usar a bibliografia mais badalada, mas entender o objeto em escalas diversificadas e, às vezes, até pela visão daqueles que se opõe à narrativa comum. O objetivo
passa por levantar o máximo de indicadores possível para, mais tarde na análise do conteúdo online, ter padrões com os quais comparar – a rede se resume a padrão. Neste sentido, é ainda importante entender as estruturas em que os dados vão estar hospedados, pois contextualizar esses sites, redes sociais, etc., irá situar melhor e trazer transparência para o processo de análise. Quando o Twitter se tornou o X, não foi só o nome que se alterou, pois não? Entendendo o recorte e as suas limitações, escolhem-se então as abordagens que melhor se adequam.

A segunda fase de um NetnoRetrato passa por um desenho convergente de análise de dados, onde as tarefas anteriores subsidiam as próximas. E aqui entra um enquadramento que justifica parte do nome desta metodologia – netno. A análise netnográfica coloca aqueles que investigam as redes no papel de observador das interações online, permitindo também a sua participação (ver Kozinets). Onde estão os dados referentes ao nosso objeto? Quem está a falar do assunto? O que dizem os anti-grupos? Estas informações são conseguidas após mapearmos as redes, o que nos dará um contexto dos seus padrões de interações. Este trabalho estabelece um ponto de situação que pode ser transportado para a segunda abordagem da análise de dados – análise de big data. Dependendo do escopo, é muitas vezes impossível dependermos apenas de dados recolhidos humanamente. Sempre em complementaridade, a conjugação de dados netnográficos e de big data traz as vantagens do olhar humano e referencial aumentado da máquina. Mas também as desvantagens.

Lidar com a parcialidade dos algoritmos de captação de dados, das próprias redes sociais ou dos nossos pontos de vista, devem ser das questões mais centrais para qualquer pessoa que investigue numa área adjacente àquelas que utilizam dados de internet. E quantos fenómenos socioculturais conseguimos nós listar que não estão também presentes no online? Todas as fases do NetnoRetrato são então acompanhadas de um módulo chamado intraobjetividade, como se de um arranjo se tratasse.

Independentemente da tarefa do NetnoRetrato, quem o implementa precisa avaliar ativamente determinados aspetos de interferência no processo de análise da pesquisa. Por isso que a ferramenta metodológica é sustentada em três pilares e acompanha uma modificação em um conceito, o qual julgo ter perdido alguma validade na atualidade. Serei breve…

Primeiro pilar = consequências da plataformização. Isto requer que a pesquisa entenda os meios nos quais está a transitar e como eles modulam a experiência online. A internet não é um espaço neutro. Segundo pilar = parcialidade do código. Este explico com perguntas… Quem fez o código de captação de dados? Como ele categoriza a informação? Ele tem em conta o contexto de publicação ou os modelos de processamento não diferem consoante o tipo de dados? Por aí vai. Terceiro pilar = conhecimento situado. Inspirado no trabalho de Haraway, o NetnoRetrato não esquece de cobrar aqueles que investigam, para que estes honestamente declarem onde se posicionam no processo de produção científica. Diferentes tarefas do NetnoRetrato terão os seus desafios específicos quanto a este posicionamento autocrítico da pesquisa, das estruturas que a evolvem, etc.

No entanto, é no virar de uma chave conceitual que os três pilares operam. A intraobjetividade propõe a atualização do termo CMC – Comunicação Mediada por Computador para CAC – Comunicação Agenciada por Computação. O raciocínio passa por olhar para algoritmos, redes sociais como um todo, chatbots, etc., enquanto agentes não-humanos. Estas estruturas já ultrapassaram a “mediação” há algum tempo. Elas agem ao coletar as nossas informações, ao interferir com a nossa navegação online, recomendar conteúdo a partir do nosso comportamento, a lista é longa. A CAC, em suma, parte do princípio de reconhecer essas dinâmicas e a relação entre a sociedade e o mundo da computação. Seguimos para a última fase do NetnoRetrato.
Depois de entendermos os padrões e contextos gerais do nosso objeto, seja no offline, seja no online, partimos para a fase três – a análise perspetivista de rede. Ela é composta por três componentes.

Primeiro, aparecem as mónadas digitais (influência de Gabriel Tarde). Imagine-se pequenos mundos em si mesmos: um perfil, um canal, um grupo. Cada um destes espaços carrega um “particular” do objeto, uma forma de contar a sua história, válida mas não total. O interessante é que nenhuma mónada está isolada. Todas se cruzam, ligam-se, conjugam ou chocam, criando sentidos panorâmicos quando entram em contato.

Depois vem a inspiração na teoria ator-rede (ANT de Latour). Aqui a lógica é simples: numa rede cultural, não são só as pessoas que contam. Os algoritmos, os botões de “gosto”, os próprios formatos de vídeo curto ou longo — tudo isso também tem agência. Ou seja, um meme ou uma política de moderação do YouTube podem ter tanto impacto quanto uma letra de música. Além disso, como agimos em rede, é relevante nunca se limitar à observação dos atores principais para a nossa pesquisa, mas ao seu entorno. O clássico do “Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és” nunca funcionou tão bem.

E, por fim, entra o perspetivismo (inspirado no perspetivismo ameríndio de Viveiros de Castro). A ideia é que cada ator vê o mundo a partir do seu lugar. Um rapper, um fã, um algoritmo — todos têm “óculos” diferentes e, portanto, versões diferentes da realidade. Mas não se trata de relativismo, pois perspetivas aqui possuem coesão dentro de grupos sociais. A análise, em vez de escolher uma versão como “a verdadeira”, tenta montar um mosaico dessas perspetivas. E a partir disto descrever o social na rede, sem tentar incorporar a nossa mundividência acerca dos retratos existentes – é aqui que entra o “retrato” no nome da metodologia.

É difícil tratar estas três separadamente no contexto do NetnoRetrato, pois a análise funciona recorrendo à forma como elas se conversam. Ou melhor, à forma como rimam, uma vez que a ferramenta não se fecha a outras abordagens que combinem entre si. No final, o arranjo musical pode fazer sentido, mas soa bem? Foi aqui que testei a ferramenta metodológica ao analisar os movimentos rap em Portugal e Brasil.

Uma das conclusões de maior destaque do estudo de caso mostra que os movimentos se adaptam mais às plataformas do que seguem as suas próprias lógicas. Encontramos assim uma rede sustentada no perfil e não na comunidade. Lugares que seriam as ágoras públicas digitais do Hip-Hop foram sendo abandonados, tomados pelo spam ou utilizados enquanto vitrines por artistas
emergentes. Enquanto isso, a remediação digital reutiliza a mesma batalha de rima em dezenas de vídeos, o MC estabelecido mostra algo da sua vida pessoal, uma página de fãs recebe comentários de haters, etc. A discussão sobre os movimentos e sociedade é cada vez menor… mas ainda há quem rime.

 

Figura 2. Fluxo das fases de um Netnoretrato

Bibliografia

  1. Kozinets, R. V, Cavusoglu, L., & Belk, R. W. (2024). Transformative Netnography : Combining Representation , Social Media , and Participatory Action Research.
  2. Latour, B., Jensen, P., Venturini, T., Grauwin, S., & Boullier, D. (2012). “The whole is always smaller than its parts” – a digital test of Gabriel Tardes’ monads. British Journal of Sociology, 63 (4), 590–615.
  3. Tarde, G. (2007). Monodologia e sociologia e outros ensaios. (E. V. Vargas, Org.; P. Neves, Trad.). Cosac Naify.
  4. Van Dijck, J., Poell, T., & De Waal, M. (2018). The platform society : public values in a connective world. Oxford University Press.
  5. Viveiros de Castro, E. (2016). A inconstância da alma selvagem (5ª ed.). Cosac Naify.