“Science it’s a girl thing“: Género, ciência e redes sociais
11 Janeiro 2018
As políticas oficiais da União Europeia têm apostado muito na afirmação de programas de captação da atenção das estudantes para as áreas das CTEM – ciências laboratoriais, tecnologias, engenharias e matemática[1]. Não entrando no detalhe, observa-se que estes programas, tal como outros modos de proceder no que se refere à publicitação de cursos de ensino superior, têm implicado dispositivos comunicacionais que, não só atuam no reforço da supremacia das áreas laboratoriais e experimentais na construção do futuro da sociedade, como configuram mensagens a partir de referenciais que continuam a não refletir os resultados da investigação sobre género e ciência.
Texto de Emília Araújo (investigadora do CECS)
Aproximam-se e reproduzem, aliás, por vias implícitas e visualmente atrativas, muitos dos estereótipos e preconceitos, contribuindo, de forma dócil, para a reprodução dos mecanismos de desigualdade. Este é um assunto da maior importância no contexto científico, não só por ser foco de desigualdade, mas porque, e em simultâneo, surge associado a fenómenos que, implícitos, discriminam e segregam as mulheres e /ou os homens de certas áreas, temas, projetos, etc., podendo estar ainda ligados aos fenómenos de assédio sexual e moral.
Neste texto, argumenta-se que as redes sociais e os movimentos de debate que se afirmam nestes espaços constituem hoje meios de consciencialização e de intervenção que importa considerar na afirmação da ação ativa contra a desigualdade e todos os mecanismos que a alimentam e reproduzem, não só, mas particularmente, no contexto da ciência e da academia.
Propomos que as redes sociais são, deste ponto de vista, espaços de vigilância ética e normativa sobre os programas, as instituições e os atores, fazendo emergir novos circuitos de ação coletiva com peso, não apenas sobre as tomadas de decisão diretamente, mas, e de forma muito importante, sobre a imagem e os processos da legitimação social das instituições de ensino superior.
Retomo neste contexto, uma das campanhas mais polémicas dos últimos anos encetada pela União Europeia justamente tendente a promover a entrada de mulheres em campos das ditas CTEM. Acentuando um suposto “lado feminino”, a campanha é de 2012 e teve como mote “science it’s a girl thing”[2] . Além de outras questões que esta campanha levantou, desde logo pelo conceito enviesado que usa de ciência, ela foi, de imediato, contestada nas redes sociais e de várias formas. Perdura até hoje como um resultado perverso e negativo do próprio desconhecimento de quem toma decisões políticas acerca do que são as relações de género e do que estas significam na academia e na ciência.
De facto, ela recorre, de forma ignorantemente linear, a conteúdos que as próprias cientistas consideram altamente pejorativos. Por isso, expõe-se a críticas muito diversas, ou porque ridiculariza qualquer singularidade feminina relativamente à apresentação física, por exemplo, ou porque reduz o trabalho em ciência a uma passerelle de mulheres que se dispõem a ser vistas em espaços de tom assumidamente masculino. Há um comentário sobre esta campanha num blogue, cujo título é ”lipstick is supposed to get girls interested in science?” /”É suposto que o baton faça com que as mulheres se interessem mais pela ciência”? que recebe também várias críticas, por vincar a necessidade de preservar um suposto, único e convencional ”lado sério” da ciência, não compatível com a mensagens inscritas no vídeo em que as raparigas usam saltos alto, roupa justa e maquilhagem, num quadro de ciência-discoteca.
Transcrevemos alguns desses comentários:
- “ooh, sexy girls giggling and lots of pink blush explosion and one male scientist checking them out.” 6/22/12 8:01pm
- Would you be okay with a video saying Science: It’s a Black Thing! showing Black people playing basketball in a laboratory if it “got ‘em in the door”? 6/22/12 7:25pm
A maioria dos comentários é crítica e irónica em relação às mensagens veiculadas pelo vídeo pseudo-pedagógico. Todavia, há mulheres cientistas que intervêm para afirmar a sua simpatia com aquela estratégia. Criticam as observações documentadas acima. Uma das mulheres escreve, mas em contraste com o que considera ser uma visão também ela misógina da própria campanha, que ser cientista não implica revogar as características e práticas cultivadas pelas mulheres, em relação à apresentação física e modos de interação em espaços de investigação em ciência. Portanto, ela pergunta qual é o sentido de assumir que não se pode ser uma cientista séria, “unless you suffer and do science at night after you’ve put your children to bed” which just makes me want to beat my head against a wall”.
A controvérsia gerada por esta campanha e o modo como aquela se plasma no mundo dos blogues e das redes sociais mostram a relevância da internet na construção de novos ágoras de discussão e debate. Ocasiões que abrem perspetivas para uma melhor consciencialização sobre a desigualdade de género nas sociedades democráticas.
As redes sociais estão repletas de conteúdos alusivos a questões de género em várias áreas – incluindo hoje de forma especial o debate sobre sexismo na arte – e são uma fonte importante para verificar tendências representacionais, pois são espaços onde se refletem a pertinência e atualidade do assunto. Serão, num futuro próximo, veículos (ainda que polémicos) de recolha e de tratamento de dados privilegiados, particularmente em relação a algumas temáticas, e tal como vem sendo demonstrado pelos partidários da big data. Neste texto pretendemos, sobretudo, destacar o seu papel na expansão do debate público e crítico sobre o papel dos decisores políticos no envolvimento com uma cultura efetiva de igualdade na academia e na ciência.
Com efeito, as redes sociais são incontornáveis na forma como se têm posicionado na ativação do debate público e institucional sobre os fenómenos da desigualdade que atravessam tais universos, de múltiplas formas. O Twitter, o Facebook e, ainda, o Linkedln, embora sendo diferentes, constituem-se enquanto espaços de divulgação, interação, mediação e debate. Sob a forma de reflexões, comentários, relatos, notícias e narrativas mais ou menos autobiográficas, as redes oferecem-se enquanto espaços de vigilância, debate ideológico e legitimação.
A eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e os seus efeitos sobre a ciência e a investigação, do ponto de vista da igualdade de género, assim como os efeitos do Brexit no acesso e na promoção, particularmente das mulheres imigrantes, nos espaços académicos constituem dois pontos fortes de debate particularmente no Twitter, ao qual se agregam outros relacionados com os modelos de funcionamento das universidades e promoção da igualdade, demonstrados a partir de realidades que aparecem ali documentadas, a maior parte das vezes ainda que parcialmente.
Desde referências diretas ao papel de mulheres na ciência ao longo dos anos, até à análise da existência de discriminação na ciência e modos diferenciados de produzi-la e disseminá-la, o Twitter alberga um conjunto vasto de interações que são, no geral, positivas e favoráveis ao debate sobre a necessidade de a política ser transformativa no que respeita à salvaguarda dos efeitos positivos que a promoção da igualdade de género representa para a ciência. Esta rede possui ligações diretas a um amplo conjunto de publicações relacionadas com o assunto, incluindo os jornais online. Destaquem-se as várias referências que se fazem nesta rede ao jornal The Guardian, em virtude da natureza das mensagens por este veiculadas, na modalidade de opinião e de análises de especialistas sobre o género e a ciência e, sobretudo, a situação das mulheres na investigação, no ensino e na gestão.
Um dos casos recentes que teve mais projeção pela negativa e que volta a demonstrar a importância das redes data de 2015. Quando se esperava que o tópico da legitimidade de acesso e permanência das mulheres na ciência estivesse na sua maturidade e fosse possível passar a uma ação mais ativa junto das instituições de ensino, no sentido da verificação dos pressupostos e práticas de igualdade de género, aparecem as menções a um homem, agraciado com o Nobel em 2001 e bioquímico – Richard Timothy Hunt – que, numa conferência na Coreia do Sul terá verbalizado o seguinte:
“Let me tell you about my trouble with girls … three things happen when they are in the lab … You fall in love with them, they fall in love with you and when you criticise them, they cry”.
Estas palavras, que outrora ficariam encobertas pelas fronteiras físicas e espaciais, rapidamente passaram para o mundo das redes sociais, dando origem a uma enorme controvérsia em que se torna mais resplandecente o domínio masculino na ciência e na educação. O bioquímico saiu da Universidade e pediu desculpa pelas palavras. Mas esta dádiva discursiva alimentou várias trocas partilhadas nas redes sociais. Por exemplo, a referência no Twitter ao The Guardian permite observar tratar-se de um episódio de grande debate, ficando patentes a mobilização e o envolvimento do público com esta questão. Se alguns dos comentários para os quais remete o artigo do The Guardian são de tipo insultuoso e, por isso, terão sido eliminados, outros mostram diversas interações pelas quais os participantes se envolvem no entendimento e na discussão, enfatizando o interesse em escavar mais profundamente o problema. Citemos alguns:
His career is already over for goodness sake – he’s in his 70’s and he has a Nobel prize. It was an honorary position, and probably earned him nothing more than an office and a desk. He did apologize, and it seemed genuine (albeit baffled). But the point is that he comes from a scientific background in which this kind of thought is instuitionally endemic. That is what the article is about – his comments are a symptom of something more general that needs to be addressed (The Guardian, 12 junho, 2015).
O Twitter destaca-se, ainda, no que respeita à demonstração da interseção de variáveis que concorrem para o reforço de mecanismos de desigualdade de género, incluindo a etnia, a idade ou a área cientifica, mas também se debatem as conquistas neste campo e o modo como diferentes sistemas nacionais de ciência e tecnologia lidam com elas.
Num momento em que as instituições de ensino e investigação se tentam afirmar em razão dos valores éticos e orientados para a sustentabilidade que propalam, torna-se importante que quem toma decisões possa entender a apresentação institucional em igualdade de género, considerando as ressonâncias que esta questão de ordem social e cultural têm na sociedade em geral, a nível nacional e internacional. A análise e o acompanhamento dos debates nas várias redes sociais citadas, com especial incidência para o Twitter revelam-se, neste contexto, ações de redobrado interesse no processo de legitimação institucional, impliquem elas estudantes, nos vários ciclos de estudo e ao longo das suas trajetórias, pessoal docente ou não docente.
[1] Uso o adjetivo “laboratorial” porque sempre me pareceu que a designação “Ciências” em CTEM transporta consigo um viés fundamental no modo de ler e traduzir a ciência que é muito mais vasta e engloba várias outras áreas disciplinares.
[2] Informação disponível aqui. O vídeo pode consultado no Youtube.
Este texto reproduz em grande parte a comunicação apresentada no congresso internacional “Género em Foco”, realizado na Universidade do Minho, entre 20 e 21 de junho, de 2014. Mais informação disponível aqui.