Uma introdução ao futuro

18 Janeiro 2018

Neste breve texto debruçamo-nos sobre o conceito de futuro, propondo que nas sociedades globalizadas e híper complexas da atualidade se torna imprescindível, não só problematizar o futuro e as formas como este surge apresentado da economia à cultura e à política, mas também desenvolver mecanismos de debate e de discussão sobre a proteção e o cuidado pelo futuro efetivo das sociedades do presente.

Texto de Emília Araújo (investigadora do CECS)

Imagem de Heather Zabriskie (uso livre)

“Futuro” é uma daquelas palavras que circula intensamente nos discursos diários, de modos muito diversos e com finalidades várias. Dir-se-ia: é uma as palavras mais óbvias que encontramos: serve para designar o “amanhã”, o que virá ou há-de-vir, o que se antecipa na base do presente e do passado; o que se antecipa na base da própria conjetura e imaginário do futuro, como tempo à frente do presente, que dista do presente e transcende o passado.

As várias ciências sociais e humanas pronunciaram-se sobre o futuro, a forma de lê-lo, estudá-lo e construí-lo. Barbara Adam continua a ser a académica que, de modo transdisciplinar, mais intensamente tem trabalho sobre “o futuro”. A tecnologia e a robótica, as alterações climáticas são alguns dos focos da sua análise. Ela parte de uma ideia muito clara: é preciso aprofundar o modo como o presente se pronuncia e imagina o futuro. Objetivo? Entender não os meandros desse futuro que há-de-vir, mas entender as dinâmicas e os estados da sociedade do presente, quais são os suas metas e quais são os pilares éticos e axiológicos em que se posiciona.  Ademais, permite identificar quais são os principais protagonistas desse futuro. A esta autora se deve uma extensa reflexão sobre problemas que enfrenta o planeta, desde as alterações climáticas às catástrofes humanas e como estas devem envolver diretamente o compromisso do presente com o futuro, através do cuidado.

Sabemos, desde logo, que assistimos à emergência, cada vez mais intensificada, de uma economia quase puramente centrada na antecipação, na projeção e na transação do futuro (como tempo à frente, aberto, incerto e vulnerável). E que, em redor desta economia centrada sobre o futuro, mobilizada por uma pressão exponencial para a inovação, tal como menciona a cientista Ulrike Felt, florescem ofertas diversificadas de antecipação, planificação e execução de futuros. São diversas as fontes desses futuros, desde a ciência, à arte, passando pela política e pelos média.

Digamos, pois, que pensar, desenhar e articular um determinado conceito de futuro (como irá ser o tempo que há-de-vir), exige alguns cuidados, no que concerne, pelo menos, três pontos: i) o modo como esse desenho pode projetar apenas um certo (e selecionado) presente e uma certa (e selecionada) voz; ii) o modo como esse desenho de futuro (veiculado por via de múltiplos discursos – texto, imagem, etc.), sendo disseminado e legitimado por determinados atores, especialistas e fazedores de opinião pode constituir-se como dominante, servindo como caminhos únicos de orientação da ação – da coletiva à individual; e iii) o modo como esse futuro desenhado e “planificado” pode criar elementos robustos de desresponsabilização ou, pelo menos, desvalorização, de elementos ontologicamente estruturantes na definição do lugar do humano e do social.

Neste sentido, torna-se importante distinguir “o” futuro da imaginação do futuro, pois a maior parte dos conteúdos mediáticos e publicitários que circulam e se impõem através das visões dos profetas do futuro e dos “gurus” do futuro são, principalmente, imaginações do futuro, muitas vezes veiculadas sob a forma de promessa. Não devem ser entendidas ou debatidas como o futuro certo, justamente sob o risco de estarmos todos a conformarmos unicamente a esse ou a esses futuros imaginados. Aliás, sob o risco de estarmos a ser agentes da afirmação e da normalização de (novas) desigualdades e exclusões, colaborando ativamente na nova economia emergente centrada, como dissemos antes, na comercialização do futuro.

Assim, importa salientar o interesse em desenvolvermos, enquanto educadores e tomadores de decisão, por um lado, a necessidade de sabermos identificar e desconstruir tais desenhos, imagens e “saliências” que se criam e disseminam quotidianamente a propósito do futuro. Por outro, a pertinência em tornar o futuro, não apenas objeto de estudo, nas suas múltiplas formas e dimensões, mas, nomeadamente, objeto de ação pedagógica.

E o que significa esta orientação pedagógica?

Sobretudo e principalmente, a possibilidade de informar, discutir o futuro enquanto conceito e enquanto tempo que (de certeza) há- de vir, mas que pode ser moldado a partir da ação no presente. Um dos cuidados centrais a ter nesta dimensão pedagógica do futuro passará, então, pela necessidade de desconstruir tais imaginações do futuro, demonstrando as contradições, as dissonâncias e as impossibilidades e/ou incompletudes que essas imagens, tendencialmente utópicas, comportam, do ponto de vista ético, humano, social e natural.  Para isso, contribuiria a convergência de debate entre atores com poder de decisão em áreas diversas, desde a política, à economia, à ciência e ao ensino sobre matérias diversas que conduzem às escolhas sobre futuros. Espaços de educação e ensino são privilegiados nessa discussão

Neste sentido, a pedagogia do futuro estaria centrada também na promoção da participação pública na definição de futuros condizentes com aspirações e valores, de forma sustentável, o que implicaria ir mais longe quanto ao principio da responsabilidade a ser zelado por todos os atores envolvidos na produção e na antecipação de futuros e pensar na própria regulação e constitucionalização do futuro, enquanto metaconceito, a ser incorporado enquanto tal (como “o” futuro) no design, planificação e avaliação da ação no presente.

Em última análise, esta orientação prática, de desconstrução dos sentidos da palavra “futuro” e de denominação efetiva do “futuro” (em si, tempo que há-de-vir) constituiria um passo decisivo para a consolidação do compromisso político e coletivo com esse mesmo tempo, numa perspetiva de longo prazo. São, por isso inumeráveis os domínios possíveis de intervenção. Para ilustração, salientemos a necessidade de considerar seriamente o “futuro” nas esferas da saúde-cuidados; as esferas da saúde-investigação científica e as esferas saúde-mercado que se entrelaçam de forma incoerente nas sociedades de hoje, como se pode verificar na prática dos cuidados médicos, tal como nas práticas relativas à alimentação.

Por exemplo, por um lado, a indústria da cultura-futuro enfatiza as potencialidades das tecnologias aplicadas ao tratamento de doenças presentemente fatais e para as quais cada vez mais investigação declara causas culturais, sociais e ambientais (por exemplo, a poluição, o uso de químicos, quase sempre justificados pela necessidade de aceleração da produção e venda). Mas, por outro, a própria ciência hesita na afirmação das possibilidades efetivas de superação pela ciência cuja caraterística essencial é ainda a incerteza e se tal se regista, é de modo lento e com desigual eco nos diversos grupos sociais e populações.

A outro nível, o dia a dia da vida social e natural manifesta os sintomas de várias ausências de futuro na ação da política contemporânea que age predominantemente sobre esse futuro refletido nas exigências do imediato e muito menos sobre a antecipação e a prevenção, de forma sustentável. A análise ao modo como a política se prepara para lidar com catástrofes naturais e humanas – algumas mais previsíveis do que outras – são um bom exemplo desse vazio de futuro de que sofre a política contemporânea, desde os níveis micro, aos níveis macrossociais, o que reforça ainda mais o interesse em interrogar e desconstruir os sentidos de futuro e de tempo longo e a forma como estes configuram princípios e modos de atuação concretos no presente.

Uma área extremamente importante interseta os média e a população infantil, sendo necessário desconstruir para este público, não só as visões de futuro que lhe são apresentadas como certas (por exemplo, ao dar como certo o casamento entre robôs e humanos, ou certas as profissões do futuro), como e essencialmente, a forma como serão e podem ser efetivamente agentes de futuros alternativos.

Numa palavra, é preciso incluir o tempo como eixo de politica e de debate, tal como o fora e continua a ser o espaço e o território.